Em meio à Covid-19, como ir além do registro online de violência doméstica

Renato Sérgio de Lima

Texto de autoria de Ludmila Ribeiro e Valéria Oliveira*

“Para diminuir as chances da vitimização feminina em âmbito doméstico e o agravamento da violência contra a mulher, os registros on-line devem vir acompanhados da concessão de medidas protetivas de urgência e de estratégias de fiscalização do cumprimento das condicionalidades”

Dizem que no Brasil o ano só começa após o carnaval. Passadas as festividades que varrem o país de norte a sul, é hora de se concentrar no trabalho. Não em 2020, quando fomos tomados pela pandemia de Covid-19. Alguns foram levados ao home office e outros tantos ao desemprego. Fato é que fomos obrigados a passar mais tempo dentro de casa, o que trouxe consequências exponenciais para as mulheres, tradicionalmente representadas como “as donas do lar”.

Como as atividades de cuidado – com as pessoas e com a própria casa – ainda são vistas como tarefas femininas, a pandemia de coronavírus contribuiu para exacerbar as desigualdades de gênero. O problema é que, além da sobrecarga de trabalho, para algumas mulheres, o Covid-19 dá novas cores à violência a que elas estão expostas no lar. Interessa-nos, então, entender se os governos atentaram para o risco de que a mortalidade entre as mulheres na pandemia pode não se dar pela Covid-19, mas por elas estarem “dormindo com o inimigo”.

Como medida relacionada ao coronavírus, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos criou um aplicativo para denúncias de violações de direitos humanos, entre as quais se incluem a violência doméstica. Apesar de disponível apenas para o sistema Android, a promessa é “trazer para o mundo digital os serviços do Disque 100 e do Ligue 180”. Na mesma direção, boa parte das Polícias Civis lançou números de Whatsapp ou aplicativos para o registro on-line de crimes, o que inclui também os casos de violência contra a mulher. Acontece que o registro é só o primeiro passo para quem decide buscar ajuda.

Como indicam pesquisas já realizadas sobre o tema,[1] a efetividade do acionamento da polícia está relacionada à determinação de medidas protetivas de urgência, que passaram a compor o ordenamento jurídico brasileiro com a Lei Maria da Penha em 2006. Elas, contudo, não são concedidas automaticamente, cabendo ao juiz analisar a sua pertinência, escolher as mais adequadas e definir seu tempo de duração. Aí está o primeiro gargalo. Muitas vezes os magistrados evitam a aplicação dessas medidas por achar que o problema é de menor importância, não cabendo à Justiça “meter a colher em briga de marido e mulher”.

Assim, mesmo antes das medidas de distanciamento social decorrentes da Covid-19, era possível identificar situações em que a vítima, após o registro da ocorrência e recebimento da medida protetiva, impossibilitada material ou emocionalmente de cumprir as orientações legais de afastamento, permanecia no domicílio ou em locais de conhecimento do agressor. Basta imaginar o quanto essa situação se agrava quando as possibilidades de mudança de endereço são mais limitadas pela crise econômica decorrente do coronavírus.

Em tempos de “normalidade”, as mulheres já sublinhavam que o sucesso das medidas protetivas dependia de outros mecanismos, como a visita das chamadas “patrulhas Maria da Penha”, que são desenvolvidas pelas Guardas Municipais e Polícias Militares em todo o país. Nas visitas, profissionais de segurança bem treinados e “da área de gênero” conversam com os agressores sobre igualdade de direitos e necessidade de respeito às mulheres, especialmente, em âmbito doméstico. A ação é bem avaliada pelas mulheres porque esses guardas e policiais sabem “onde as violências acontecem”, efetivamente, “tomam providências” para evitar novas agressões e, especialmente, o feminicídio.

Essa história é para dizer que somente os registros on-line de violência doméstica tendem a ser inócuos para prevenir os crimes contra as mulheres em âmbito doméstico durante a pandemia. Talvez ajudem na contabilidade dos efeitos da Covid-19 na sociabilidade familiar, como também indicam os dados extraídos das redes sociais, que apontam para aumento da incidência de brigas e agressões em casa e que nem sempre chegam ao conhecimento da polícia.[2]

Para diminuir as chances da vitimização feminina em âmbito doméstico e o agravamento da violência contra a mulher, os registros on-line devem vir acompanhados da concessão de medidas protetivas de urgência e de estratégias de fiscalização do cumprimento das condicionalidades. Para tanto, há que se ampliar o escopo de medidas e revigorar algumas estratégias, por exemplo, como as mobilizadas pelas patrulhas Maria da Penha, com profissionais com treinamento e perfil adequados para a abordagem que esse tipo de situação demanda. Afinal, ela envolve o medo e o constrangimento da mulher, exigindo a sensibilidade de quem a escuta do outro lado, o que aponta para uma outra questão. Num contexto de agravamento da pandemia de coronavírus, é preciso garantir Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados aos agentes de segurança pública que realizam as visitas. Ou seja, é indispensável pensar o problema holisticamente.

Consideramos que atender aos casos de violência doméstica contra a mulher é papel do estado, por meio da articulação entre os seus serviços de segurança pública, justiça, saúde, assistência social e/ou defesa de direitos humanos. Para tanto, faz-se necessário providenciar, no mínimo: 1) vagas em serviços temporários de acolhimento à vítima, seus filhos e outros familiares também ameaçados;[3] 2) acesso a programas de transferência de renda como o Bolsa Família e mesmo o Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; 3) atendimento em serviços de apoio e acompanhamento psicológico, e 4) ampliação dos canais de comunicação com a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Reconhecemos que tais medidas são extremamente desafiadoras para o poder público, já que as instituições envolvidas sofrem com alterações significativas decorrentes da própria pandemia. Porém, o planejamento de uma política consistente de apoio às vítimas e de prevenção da violência doméstica em um cenário como o atual implica ter no horizonte essas e outras ações mais concretas. Caso contrário, os aplicativos de registro on-line serão mais um investimento público que não gerará os resultados esperados, fazendo com que, ao final da quarentena, tenhamos um crescimento de vítimas fatais do distanciamento social. Não como decorrência da COVID-19, mas da vivência da mulher com o seu maior algoz: um membro de sua própria família.

Ludmila Ribeiro

Professora Associada do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (DSO/FAFICH) e Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Valéria Cristina de Oliveira

Professora Ajunta do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação da Faculdade de Educação (DECAE/FaE), Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) e do Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (NUPEDE), todos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

[1] Azevedo, R. G., & de Vasconcellos, F. B. (2012). A Lei Maria da Penha e a administração judicial de conflitos de gênero: Inovação ou reforço do modelo penal tradicional?. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social5(4), 549-568.

[2] Em nota técnica publicada em 20 de abril de 2020, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) aponta o crescimento de menções a brigas entre casais reportadas por vizinhos no Twitter face à evolução menos acelerada e até negativa dos registros de ocorrências e de medidas protetivas de urgência concedidas no mesmo período. FBSP. (2020). Violência doméstica durante a pandemia de COVID-19. São Paulo. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-domestica-durante-pandemia-de-covid-19/.

[3] Como em projeto realizado em países como a França, a Deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentaram proposta emergencial para prover hospedagem a mulheres em situação de violência doméstica. Disponível em: