Processos de estupros têm alta de 35% em cinco anos no RS
Em 2019, ingressaram na Justiça do RS 3.671 novas ações, das quais 2.678 tiveram crianças ou adolescentes como vítimas.
Jeniffer Gularte / GauchaZH
O número de ingressos de novos processos envolvendo casos de estupro e estupro de vulnerável — quando a vítima tem até 14 anos — no Judiciário do Rio Grande do Sul cresceu 35% em cinco anos. Em 2015, 2.712 novas ações passaram a tramitar, enquanto em 2019, o total de ingressos chegou a 3.671. Com mais processos de violência sexual para analisar, os juízes também elevaram o número de condenações, segundo dados obtidos por GZH com o Tribunal de Justiça (TJ) gaúcho.
As sentenças condenatórias para casos de estupro cresceram 25% entre 2015 — ano com 221 condenações —, e 2019, com 277 decisões desfavoráveis aos réus. No caso do estupro envolvendo crianças e adolescentes, as condenações tiveram elevação de 79% em cinco anos — de 468, em 2015, para 839, em 2019 (veja abaixo). Por outro lado, as absolvições também tiveram alta: de 50% para estupro de vulnerável, com 416 decisões em 2015, contra 625, em 2019. No estupro em que as vítimas são adultas, houve recuo de 2,7% nas absolvições.
Responsável por analisar processos de estupro que acontecem em contexto familiar ou afetivo, a juíza Madgéli Frantz Machado, do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre, afirma que a palavra da vítima é essencial no processo penal, mas sempre é analisada dentro de um contexto, interligada às provas produzidas:
— Nenhuma prova é analisada isoladamente. Pode-se ter a palavra da vítima, mas estar em desconformidade com o exame de corpo de delito. Muitas mulheres não se dirigem à polícia imediatamente após o estupro, o que é compreensível, em razão da gravidade do fato e das consequências psicológicas. Se isso não ocorre, as provas ficam fragilizadas, especialmente as periciais, pois nesses delitos o exame de corpo de delito, assim como das vestes da vítima, são fundamentais.
A magistrada considera que, ao longo dos últimos anos, o sistema de Justiça — da perícia, polícia, promotor até o magistrado — tem se capacitado para atender a esses casos, tanto no aspecto técnico quanto no que diz respeito a não revitimização e ao acolhimento e atendimento humanizado da vítima. Reconhece, no entanto, que ainda é preciso avançar:
— Historicamente, o estupro é a representação da dominação do homem sobre a mulher: o poder sobre a sua vontade e o seu corpo. É preciso atuar na capacitação do sistema de Justiça e dos demais integrantes da rede de atendimento que trabalham para que suas ações tenham esse “olhar de gênero”, livres de preconceitos, rótulos, estereótipos, julgamento moral da vítima.
Historicamente, o estupro é a representação da dominação do homem sobre a mulher: o poder sobre a sua vontade e o seu corpo
MADGÉLI FRANTZ MACHADO
Juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre
Há também casos de violência sexual que nem sequer evoluem para ação judicial. Os números do TJ apontam que o arquivamento de inquéritos disparou 125% entre 2015 e 2019. No ano passado, a Justiça arquivou 174 investigações de estupro de vulnerável. Em 2015, 77 não foram adiante. Em cinco anos, 625 investigações de violência sexual contra menores não chegaram a virar processo. Em igual período, a Justiça mandou arquivar 531 investigações de estupro contra adultos. De 2015 para 2019, houve crescimento de 23% no número de inquéritos que não viraram processos.
Há cinco anos à frente da 6ª Vara Criminal Especializada em Crimes Sexuais contra Crianças e Adolescentes de Porto Alegre, a juíza Tatiana Gischkow Golbert acredita que esse aumento pode estar ligado à série de inquéritos que estavam represados e que foram apreciados nos últimos anos.
— Tinha muito inquérito represado. E houve regime de exceção para colocar em dia. Reconhecemos a necessidade de a vítima ser ouvida em prazo razoável, justamente para poder seguir a vida dela. Independentemente da decisão, a vítima que está ali se sente vítima. Juridicamente, às vezes, não se consegue enxergar essa condição. Mas, como juiz, temos de ter empatia, independente do resultado do processo — diz Tatiana.
“As provas são efêmeras”, diz promotora sobre crime sexual
Um dos principais desafios de ações envolvendo violência sexual é a necessidade de coleta de provas técnicas que são perecíveis. A promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público, Denise Casanova Villela, explica que quanto mais próximo o relato da criança e do adolescente for da data do fato, mais fidedigno e possível de credibilidade será o depoimento. O fator tempo é ainda mais preponderante na coleta de indícios físicos:
— O melhor caminho é sempre, assim que o fato aconteceu, que aquela mulher ou criança faça produção de prova o mais rápido possível. Se o processo é muito antigo, não teve coleta adequada de prova na época, é muito difícil fazer agora. As provas são efêmeras e precisam ser coletadas dentro de prazo razoável. A produção da prova é um aspecto amplo, além de todas as perícias, tem outra peculiaridade: muitas das coletas de fluidos corporais e de vestígios físicos são efêmeros, se não colhidos num período de 72 horas após o ato, se perde esse resquício.
Embora ainda existam barreiras para produção de prova, a promotora considera fundamental o aperfeiçoamento gerado com a criação do Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai) no Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre. No local, é oferecido atendimento integral às vítimas de violência menores de 18 anos, desde o registro da ocorrência, preparação para a perícia médica, notificação ao Conselho Tutelar e avaliação clínica até o encaminhamento para tratamento terapêutico na rede de saúde.
Muitas das coletas de fluidos corporais e de vestígios físicos são efêmeros, se não colhidos num período de 72 horas após o ato, se perde esse resquício
DENISE CASANOVA VILLELA
Promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público
A promotora defende que estrutura similar deveria amparar mulheres vítimas de estupro, com cuidados e encaminhamentos concentrados em único espaço, facilitando a coleta de provas.
Luta para desarquivar apuração
Após ter um inquérito de estupro do filho arquivado em 14 de outubro deste ano, a mãe de um menino de sete anos da Região Metropolitana luta na Justiça para tentar reverter a decisão. No despacho, a magistrada Daniela Azevedo Hampe atendeu a recomendação do Ministério Público. A Polícia Civil indiciou o pai da criança por estupro de vulnerável.
A mãe conta que o menino, após voltar de visitas na casa do pai em 2019, disse que o homem colocava a mão em suas partes íntimas. Embasado por depoimento de familiares, professores e o laudo psíquico do Crai — que apontou “relato compatível com hipótese de abuso sexual” —, o delegado Anderson Spier responsabilizou o pai, que não compareceu ao depoimento.
— No decorrer de 2019, meu filho via o pai a cada 15 dias, e dizia que ele estava encostando as partes íntimas dele nas do meu filho. Fui chamada na escola porque meu filho contou isso também para a professora numa roda com outros colegas. Incomodou a ponto de a criança falar na escola. Quando o delegado concluiu o inquérito, peticionamos para que ficasse oficializado que ele não chegasse perto do meu filho. Com arquivamento, a qualquer momento ele pode pedir as visitas.
A mãe planeja entrar com mandado de segurança para que a decisão seja revista e o caso volte a ser avaliado:
— É a palavra do meu filho que está nos depoimentos, e o laudo mostra que ele não foi induzido a falar o que contou. Nunca esperava que, com o laudo psíquico, a investigação fosse arquivada.
Procurado pela reportagem, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ) não se manifestou sobre a decisão.