80% dos crimes virtuais investigados no RS estão ligados à pedofilia

Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação também apontam que Porto Alegre e cidades da região metropolitana lideram os registros da Polícia Civil

Quando o assunto são crimes virtuais, logo vêm à memória casos como o da atriz Carolina Dieckmann, que teve o seu dispositivo invadido e suas fotos íntimas vazadas. A situação, que motivou a Lei Nº 12.737/2012, é somente a ponta do iceberg dos delitos envolvendo o mundo digital. Explorando este bloco gigante, que engloba desde fraudes e golpes até intolerância, nossa investigação descobriu que a maior parte dos crimes virtuais tem como vítimas as crianças.

Segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS), obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), os delitos relacionados à pedofilia representam 80% dos crimes virtuais no estado. Em abril, 168 investigações estavam em andamento.

De acordo com informações obtidas junto ao Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA), o delito virtual mais frequente ligado à pedofilia é o armazenamento e/ou compartilhamento de arquivos de pornografia infanto-juvenil, por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica.

Os outros 20% são por invasão de dispositivo informático, que representam 42 investigações. Estes crimes estão ligados à violação de mecanismos de segurança, previsto no artigo 154-A do Código Penal. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul divide os crimes cibernéticos em duas nomenclaturas: pedofilia/internet e invasão de dispositivo informático.

Cidades em evidência

Os números obtidos revelam que 551 ocorrências que envolvem pedofilia foram registradas no RS entre 2009 e 2018, uma média de 55 casos por ano. O período mais expressivo foi o ano passado, quando foram contabilizadas 88 ocorrências. Em 2019, pelo menos 24 crimes relacionados à pedofilia no ambiente virtual já foram denunciados às autoridades.

A capital do estado é a cidade que mais se destaca quando o assunto é pedofilia. Desde 2009, Porto Alegre registrou 110 denúncias de crimes virtuais envolvendo crianças. Em segundo lugar está Gravataí, com 32 denúncias, seguida por Viamão, com 25. Cachoeirinha teve um total de 16 denúncias — mesmo número de Canoas.

No entanto, fazendo a relação número de denúncias por habitante, a cidade que mais chama a atenção é Imbé, no litoral norte do estado. Foram registradas 12 denúncias, uma a cada 1.859 habitantes. Apesar de ser uma cidade turística, a maioria das queixas foram feitas fora dos meses de veraneio e férias escolares, época de maior movimento no litoral. Os cálculos foram realizados considerando a população estimada pelo IBGE para 2018, de 22.309 habitantes.

Outras cidades também se destacaram neste sentido. Na serra gaúcha, São Marcos registrou um caso a cada 3.574 habitantes, e Gramado, um a cada 5.979. Pinheiro Machado, próxima a Pelotas, e Dom Pedrito, mais próxima ao Uruguai, foram as mais expressivas do sul do estado, com um caso a cada 4.117 moradores e 4.823, respectivamente.

Primeira condenação por estupro virtual no país pode ser do RS

Apesar das localidades darem um panorama sobre as ocorrências, um caso recente mostra que os crimes virtuais não têm fronteiras. Em São Paulo, um pai percebeu que o filho de dez anos trocava mensagens de conteúdo sexual com um adulto. O que é um pesadelo para qualquer pessoa que zela por uma criança, se tornou uma denúncia na Polícia Civil, que rastreou as mensagens e chegou a um estudante de medicina de Porto Alegre. Após as investigações, as autoridades constataram que o suspeito praticava atos libidinosos com a criança via webcam, além de armazenar mais de 12 mil imagens de pornografia infantil.

O crime foi noticiado pela mídia em 2017 e caminha para ser a primeira condenação do Brasil por estupro virtual. Segundo Júlio Almeida, promotor recém aposentado do Ministério Público do RS que denunciou o caso, este processo está em análise no Tribunal de Justiça. “Tenho certeza absoluta que vai ser confirmada a decisão. Será a primeira condenação do Brasil por estupro virtual. Isso vai ser um choque muito grande no sistema e com a possibilidade de aumento dessas penas”, assegura.

Essa condenação deve ser baseada em uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que determina não ser preciso o contato físico para que se configure o contato sexual com o adolescente ou com a criança. “Então nós apenas transferimos isso para o mundo virtual, já que na atualidade eu compro pela internet, namoro pela internet, vendo por internet”, explica Júlio Almeida.

Segundo o promotor aposentado, a pedofilia aparece em F65.4 do CID (Código Internacional de Doenças), sendo descrita como a preferência sexual de adultos por crianças. “Tecnicamente, não existe o crime de pedofilia, mas ela está ali, no Estatuto da Criança e do Adolescente, como o armazenamento, a transmissão, a produção de imagens pornográficas, onde há cena de sexo explícito real ou simulado ou exposição de genitália de crianças e adolescentes para fins primordialmente sexuais”, afirma Júlio. Para ele, esse tipo de crime virtual acontece de forma muito intensa em função da facilidade de acesso às imagens e aos vídeos de pornografia infanto-juvenil, além do fato de os criminosos contarem com o anonimato na internet como aliado.

Segundo informações do DECA, não existe um perfil padrão do pedófilo, como idade, profissão ou situação econômica. Porém, nos crimes virtuais, os suspeitos geralmente são pessoas do sexo masculino, que possuem computadores, notebooks e smartphones de boa qualidade para armazenamento e/ou compartilhamento de arquivos de pornografia infanto-juvenil, além de uma boa internet.

Os limites entre o virtual e o presencial

Apesar de a pedofilia ser algo diferente do estupro de vulnerável, a linha entre o virtual e o presencial tem sido tênue, pois ambos orbitam no real. De acordo com o DECA, cerca de 84% das pessoas que baixam arquivos de pornografia infanto-juvenil tendem a praticar o crime de estupro de vulnerável se tiverem a oportunidade de estar presencialmente com uma criança ou adolescente.

Um caso ocorrido em Cruz Alta ilustra isso: Eduardo* atraiu sua vítima de 11 anos através de uma amizade virtual. De acordo com o acórdão do Tribunal de Justiça do RS** referente ao processo, a partir de mensagens via Facebook e WhatsApp, o criminoso conquistou a confiança da criança e a convenceu a ter o encontro presencial e cometeu o estupro.

Eduardo* também armazenava fotos e vídeos de caráter sexual contendo a menina. Segundo o texto do acórdão (nº 70079956595), “o acusado aliciou, assediou e instigou a criança a produzir e enviar para si fotografias e vídeos contendo cenas sexuais e cenas pornográficas, nas quais a imagem da vítima deveria estar presente”.

Em outro caso, disponível em outro acórdão (nº 70068206101) do TJ-RS, o criminoso produzia imagens na sua própria casa, em Esteio. Ricardo* costumava “fotografar os guris” com a cumplicidade da sua mãe, que vigiava externamente o cômodo. Um deles foi o adolescente William*, exposto em recorrentes cenas pornográficas e de sexo explícito. Quando o pedófilo foi encontrado pela polícia, mais de 5 mil arquivos estavam armazenados em seu computador e em pen drives. Eles continham imagens sexualizadas de crianças e até de bebês.

Segundo o promotor aposentado Júlio Almeida, para o pedófilo não é suficiente consumir o material. “Se ele está em contato com grupos ou na deep web, ele tem que produzir material e apresentar esse material aos outros integrantes do grupo para ser aceito e continuar nele ou até, eventualmente, ganhar dinheiro com isso, porque hoje é assim, vende pedofilia por bitcoins”, ressalta.

O promotor avalia que os casos de abuso sexual de crianças e adolescentes que acontecem em ambiente familiar só não vão para a esfera virtual, justamente porque o desejo do pedófilo é satisfeito no mundo físico.

Em Santo Cristo, na região norte do estado, o padrasto de Thais* respondia processo por estupro contra a adolescente, então com 14 anos. Com a intenção de proteger o homem, a mãe da menina facilitou o acesso de conteúdo pornográfico da filha às advogadas dele. As imagens, que estavam no Facebook de Thais*, seriam usadas para provar que a vítima “não se tratava de uma menina ingênua como aparentava ser”, como constava nos autos. O processo contra a mãe e as advogadas acabou sendo extinto por não se enquadrar no ECA.

Como é feita a denúncia e investigação

Em Porto Alegre, há uma delegacia específica para a denúncia de crimes cibernéticos, a Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos (DRCI), que faz parte do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) da Polícia Civil. No caso de outras cidades, a denúncia pode ser feita na delegacia mais próxima.

De acordo com o delegado André Anicet, da DRCI, as operações para responsabilização dos criminosos são feitas principalmente a partir da denúncia, depois é realizada uma busca ou rastreamento de IP. “Após o suspeito ser identificado, a perícia analisa os aparelhos eletrônicos para identificar se há conteúdo infantil e a quantidade. Se encontrado, o criminoso é preso em flagrante”, conta.

Marcos*, que era socorrista na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, foi descoberto pelas autoridades através de uma denúncia feita pela própria instituição. O hospital fez uma auditoria para monitorar a produtividade dos funcionários, acessando as suas telas em tempo real.

Foi aí que constataram que “95% ou mais do conteúdo que Marcos* acessava eram de fotos de crianças nuas e praticando sexo com adultos”, diz o texto. O criminoso editava as fotos e escrevia nelas expressões de conotação erótica, além de acessar conteúdos de pedofilia na deep web, uma zona oculta da internet, conhecida pelo caráter ilegal e imoral.

Para descobrir quem acessava o conteúdo, as evidências foram claras: Marcos* também aparecia nas imagens, trabalhava sozinho na sala onde ficava o computador, além de seu cartão ponto coincidir com os horários dos acessos. Ele inclusive possuía imagens de uma menina de 11 anos, sua vizinha, da qual abusou sexualmente nesta mesma sala do hospital.

Fazendo um monitoramento dos acessos criminosos, que eram praticamente diários, a equipe do hospital fez cópias do conteúdo e comunicou o Ministério Público. O criminoso foi preso em flagrante.

Para Júlio Almeida, não é difícil identificar os criminosos, mas é necessário que haja denúncia. “O problema é que as notícias não chegam para o sistema de perseguição penal e o sistema também não está preparado para isso, porque hoje tem programas de computador que mascaram teu ID”. Segundo o promotor aposentado, o número de fatos noticiados sobre crimes virtuais é muito pequeno. “É quase ínfimo perto do material e da quantidade de informações de pedofilia que transitam pela internet”, afirma.

Segundo Almeida, existe hoje uma outra forma de realizar as buscas pelos crimes virtuais. “O Brasil tem um sistema com os Estados Unidos, onde chega através de notícias por código hash e aí se deflagram as operações. Mas é um sistema próprio através de uma ONG, já que a maior parte das comunicações de internet passam pelos estados unidos”, ressalta.

Operação Luz na Infância

As Polícias Civis do Brasil também possuem uma operação permanente chamada Luz na Infância, que tem como objetivo a busca e a prisão dos investigados por crimes virtuais relacionados à pedofilia. As delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente e de Repressão a Crimes Informáticos fazem a apuração, instauram inquéritos e solicitam as buscas à Justiça.

A primeira fase da operação teve início em outubro de 2017, a segunda, em maio de 2018, a terceira, em novembro de 2018 e a quarta, em março do ano corrente. Desde o início da Luz na Infância, nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, mais de 500 pessoas foram presas.

Como funcionam as punições

Segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação, as punições são específicas para cada tipo de crime virtual. “Para os crimes comuns, aqueles que podem ou não se consumar através do uso da informática, temos as penas previstas no Código Penal. Para os crimes que somente podem se aperfeiçoar necessariamente através do uso da informática, temos a Lei 12.737/2012”, diz o texto de resposta da SSP.

Esta Lei de 2012 é conhecida, como citado anteriormente, pelo nome de Carolina Dieckmann, por conta do ocorrido com a atriz. Ela prevê crimes como invasão de dispositivo informático alheio, “com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. A pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa.

Como pode ser observado no infográfico, a legislação sobre crimes virtuais é recente, pois o surgimento de novos delitos motivou a geração de novas Leis. Outro exemplo é a Lei Nº 13.718, sancionada em 2018. Ela “tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, torna pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável. Estabelece causas de aumento de pena para esses crimes e define como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo”. A pena é de reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Quando se trata de crimes contra a infância, o que existe de mais específico é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Dentro dele, a Lei 11.829, de 2008, tem o fim de “aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet”. Cada artigo desta Lei traz especificações de crimes e suas respectivas penas.

O índice de condenação nos casos de pedofilia é bastante alto, assim como as penas — porque normalmente não é cometido somente um crime. “O sujeito produziu imagens que podem estar vinculas com o estupro e a transmissão das imagens muitas vezes significa arquivamento. Então, dependendo do caso, as penas acabam acumulando, se tornando bastante severas” enfatiza Júlio Almeida.

Contudo, mesmo presos, alguns criminosos ainda recorrem ao uso da fiança, como foi o caso do estudante de medicina citado anteriormente. Após ter sua primeira prisão decretada, ele pagou fiança de R$20.000 e foi solto. Posteriormente, foi preso novamente, situação na qual ainda se encontrava até o fechamento desta reportagem.

Para o delegado André Anicet, especializado na investigação de crimes virtuais, o que poderia ser feito para evitar que o criminoso, que pagou a fiança, por exemplo, continue a agir é mantê-lo na prisão. “A única forma de evitar que o criminoso continue a agir é estando preso, sem contato externo. Contudo, nossa legislação dá alguns benefícios para que o criminoso não fique na cadeia, como as medidas cautelares diversas da prisão previstas no Código de Processo Penal”, ressalta.

Segundo o promotor aposentado Júlio Almeida, os estudos psiquiátricos determinam que o pedófilo não tem cura. “Ele vai passar 10, 14, 20 anos na prisão e, quando sair, vai repetir o ato”. Também não é possível exigir um tratamento compulsório, porque isso não está previsto como pena para o crime. “Se ele cumpriu toda a pena, ele está em dia com a sociedade. Não pode ser exigida uma conduta que não está na lei”, explica.

Reportagem realizada por estudantes da Unisinos sob a supervisão de Luciana Kraemer e publicada originalmente em Beta – Medium.

*Todos os nomes dos criminosos e vítimas utilizados nesta reportagem são fictícios.

** Todos os acórdãos citados foram encontrados no site do TJ-RS.