Epidemia foi controlada no RS ou ‘continuamos sangrando’? O que dizem especialistas

Luciano Velleda

As sucessivas reaberturas do comércio e de atividades econômicas nas últimas semanas e a autorização para a volta às aulas, anunciada pelo governo do Estado, provocam percepções distintas na população a respeito do atual estágio da pandemia do coronavírus no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Se bares, lojas e até os shoppings reabriram, a mensagem dos governantes à população tende a indicar a melhora da crise sanitária ou inclusive seu controle. Termos como “estabilidade” no número de mortos e na ocupação dos leitos de UTI são usados como parâmetros para retratar o cenário de contenção e, às vezes, de desaceleração da contaminação no RS. 

A questão, todavia, está longe de ser consenso entre autoridades e especialistas da área médica. São muitas as nuances. Ao mesmo tempo em que a estabilidade nas UTIs é um bom sinal, ela se dá em níveis elevadíssimos. Há muito tempo a lotação das UTIs em Porto Alegre ronda os 90% da capacidade dos hospitais. O mesmo se aplica ao número de novos casos e de mortes no RS. Estáveis, mas altos.

Ao participar da apresentação, nesta quinta-feira (10), da oitava e última etapa da pesquisa de prevalência do novo coronavírus no Rio Grande do Sul, a coordenadora do Comitê de Dados do governo estadual, Leany Lemos, refutou o entendimento de que a epidemia esteja descontrolada. “Não está fora de controle a epidemia no Rio Grande do Sul, de forma alguma”, afirmou, convicta. 

Como justificativa, Leany se apóia no número de mortes por covid-19 no RS, em comparação com outros estados do Brasil e com outros países. O boletim diário divulgado nesta quinta-feira (10) pelo governo estadual, mostra que o RS tem bem menos casos confirmados e mortes por 100 mil habitantes do que a Espanha, França, Reino Unido, Itália e Equador. Em território nacional, o Estado é o terceiro com o menor número de mortes por cada 100 mil habitantes. O resultado positivo retrata todo o período da pandemia em solo gaúcho, porém, visto isoladamente, pode ser insuficiente para refletir o atual estágio da contaminação.

Isso porque o mesmo boletim do governo, ao analisar a evolução de casos acumulados em 7 dias por cada 100 mil habitantes, diz: “O RS apresentou forte avanço nas últimas semanas, superando taxas que levaram países europeus a implementar medidas de restrição”. Atualmente, a taxa de novos casos no Rio Grande do Sul é superior à média nacional. Em outro trecho, o documento do governo estadual atesta que, nos últimos 5 dias, “a média de crescimento de casos registrados no Rio Grande do Sulpassou para a maiorentre os estados selecionados”. Esta taxa média de novos casos no RS, considerando os últimos 5 dias, está em 1,47%. Em seguida vem o Paraná (0,92%), Minas Gerais (0,90%) e Santa Catarina (0,68%). Desde o último dia 6, o Rio Grande do Sul tem tido a maior taxa média de novos casos entre os estados brasileiros. 

Boletim do governo estadual desta quinta-feira (10) indica crescimento de casos no RS. Imagem: Comitê de Dados/SES/SEPLAG

Sangria

Alexandre Zavascki, professor de infectologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que a alta taxa de novos casos indica que o coronavírus segue avançando no Estado. Ele destaca que na semana epidemiológica 36, encerrada no último dia 5, o Rio Grande do Sul teve uma taxa de 23,8 novos casos por dia para cada 100 mil habitantes — São Paulo ficou em 15,9 e o Brasil em 18,8 novos casos por dia para cada 100 mil habitantes. “É uma taxa alta de casos, indica que há muita transmissão”, afirma. 

O infectologista critica o fato da lotação das UTIs ter se transformado no indicador mais importante aos olhos do governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre. Para ele, outros indicadores são mais precisos para analisar o avanço da contaminação, como o número de novos casos por dia. Além disto, pondera que o contágio pode avançar, mas com menos casos graves, evitando assim o colapso do sistema de saúde. “Nosso medo era colapsar, mas evitar isso não pode ser o único objetivo. Toda a sociedade continua se arriscando e agora tem as crianças”, afirma.

Zavascki avalia que o Rio Grande do Sul está sendo inovador ao propor a reabertura das escolas com taxas altas de contaminação. A exposição das crianças certamente aumentará. Embora reconheça a importância da educação, o professor de medicina da UFRGS afirma que o retorno deveria acontecer somente após a redução da transmissão da doença. “A gente não colapsou o sistema de saúde e isso foi positivo. Você estancou a hemorragia, mas continua perdendo sangue todo dia. Continuamos perdendo muita gente e não são só os óbitos, mas as sequelas também. É um problema ficar com a doença ativa por muito tempo e agora com as aulas, podemos entrar num novo ciclo quase interminável. Continuamos sangrando todo dia.”

A tão falada estabilidade da lotação das UTIs, mesmo após a retomada de muitas atividades econômicas, pode significar a diminuição de novos casos graves da doença. Zavascki destaca que já há estudos que associam o uso massificado de máscaras com tal redução. A proteção no rosto, mesmo que não impeça completamente o contágio, pode ter o efeito de a pessoa se contaminar com uma carga viral menor, causando sintomas mais leves, sem necessidade de hospitalização. 

O professor lamenta, todavia, que a escolha da sociedade e dos governantes tenha sido a de desistir de controlar a crise do coronavírus. Ele lembra que houve um momento recente em que o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), queria o lockdown para conter o avanço da contaminação, mas não foi adiante na proposta e desistiu poucos dias depois por falta de apoio. “A opção da sociedade foi que a epidemia se resolva por ela mesma. A pressão de quem queria o contrário não foi suficiente”, diz o infectologista.

Estabilidade x controle

O reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, coordenador da pesquisa de prevalência do coronavírus no Rio Grande do Sul, tem outra leitura do estágio da epidemia no Estado. Em sua análise, os dados indicam que o contágio do vírus está em fase de desaceleração em terras gaúchas, além de destacar que são bons em comparação com outros estados do País.

Para Hallal, o atual estágio da crise permite a retomada de diversas atividades econômicas, “com os devidos cuidados”, pontua. Se concorda com a reabertura econômica, o reitor da UFPel, entretanto, discorda da volta às aulas presenciais. “Não é hora de retornar as atividades escolares. Acho que precisaríamos ter uma consistência de queda no número de casos e no número de óbitos por um período um pouco maior”, explica. A UFPel já decidiu que o retorno às aulas presenciais na instituição será só em 2021.

Por sua vez, o infectologista Ronaldo Hallal, avalia que a crise do coronavírus está fora de controle no Estado, ao contrário do que acredita a coordenadora do Comitê de Dados do governo estadual, Leany Lemos. “A gente sabe que a reabertura, do modo como está acontecendo, vai impossibilitar que a epidemia fique sob controle. Ela não está sob controle”, afirma o consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.

Ao analisar a tão propalada estabilidade nos números de mortes e de ocupação de UTIs, Ronaldo Hallal segue o entendimento de Alexandre Zavascki, professor de infectologia da Faculdade de Medicina da UFRGS, ao ponderar que tal platô está em níveis muito altos. Ele destaca que o comportamento da crise no Brasil está sendo diferente do que aconteceu na Europa e na Ásia. Enquanto lá houve um rápido pico, seguido de uma também rápida queda, por aqui se verifica uma estabilidade prolongada em números elevados de mortes. 

“Me parece que houve uma dificuldade grande em se conseguir estabilizar, em controlar a ‘primeira onda’ da epidemia”, explica o infectologista, com a ressalva de que a própria ausência da queda no ritmo de contaminação dificulta definir o que seja a “primeira onda” da crise sanitária. “Estamos convivendo por muito mais tempo com níveis muito elevados de transmissão, de mortes e sequelas. Isso demonstra um fracasso. Não tivemos queda acentuada e estamos numa estabilidade elevada, e estabilidade não é controle. Temos uma estabilidade epidemiológica que está fora do controle”, defende o consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia.

Ao avaliar a possibilidade de retomada das aulas presenciais, Ronaldo Hallal discorda completamente da proposta. A situação do RS, diz ele, é adversa em todos os cenários: muitas mortes, alta ocupação das UTIs e contágio elevado. “Vamos aumentar a circulação viral com a reabertura das escolas e isso afeta familiares e toda a comunidade escolar. Quanto maior for a exposição, óbvio que o impacto será maior em internações e mortes. Está se expondo as crianças e as famílias, principalmente de baixa renda”, afirma o infectologista. 

A perspectiva social o preocupa de modo particular. Hallal avalia que as decisões que têm sido tomadas aprofundam a desigualdade sanitária e resultam numa certa “perversidade social”. O infectologista enfatiza que o papel dos governantes é proteger os mais vulneráveis, e o Estado, diz, está reduzindo tal proteção. Confrontado com o argumento de quem defende a volta às aulas com a justificativa de que os pais precisam trabalhar e não têm onde deixar os filhos, ele arremata: “É uma falsa justiça social”.

Há poucos dias, a Sociedade Riograndense de Infectologia emitiu nota criticando a proposta de retomada das aulas presenciais. Um dos aspectos abordados é a falta de testes, a ausência de planejamento para controlar surtos nas escolas e protocolos para fechamento. Hallal destaca que os protocolos de segurança são de redução de riscos e que não há proteção completa. “Está faltando consistência para embasar uma decisão como essa, não é uma decisão baseada em ciência. Há uma falsa sensação de que a epidemia está controlada e que pode ser controlada com protocolos.”

Se equilibrando entre concordâncias e discordâncias de especialistas da área médica e governantes, o Rio Grande do Sul avança no mês de setembro, completando seis meses da maior crise sanitária dos últimos 100 anos. Por enquanto, a incerteza do que ainda virá parece ser uma das únicas certezas.