Documentário conta as histórias de mulheres que mataram para sobreviver

Fernanda Canofre

O Brasil possui a quinta maior taxa de feminicídio do mundo. No país que só reconheceu a tipificação do crime de quem morre por ser mulher há dois anos, em que a maioria dos registros policiais ainda não inclui o termo, 106.093 mulheres foram assassinadas pelo seu gênero entre 1980 e 2013. Cerca de 50,3% dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no país foram cometidos por familiares das vítimas. Em 33,2% dos casos, o assassino era um companheiro. Porém, algumas mulheres conseguem inverter a narrativa.

Três dessas histórias são contadas agora no documentário brasileiro Legítima Defesa (2017), premiado no início do mês no Festival Internacional Mujeres en Foco, em Buenos Aires. Escrito, dirigido e produzido por mulheres, o filme percorreu pilhas de processos nos Tribunais de Justiça de Rio de Janeiro e São Paulo em busca de histórias de mulheres que mataram para sobreviver.

Segundo o direito penal, quem mata em legítima defesa não comete crime. O Código Penal brasileiro define que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. No Brasil, cerca de 6% dos homicídios cometidos por mulheres se enquadra como tal.

Conversamos por email com Susanna Lira, diretora do filme, Leda Stopazzoli, idealizadora e produtora-executiva, e Sara Stopazzoli, pesquisadora e roteirista sobre o que essas histórias representam no debate de violência de gênero:

Sul21: Como surgiu a ideia de falar sobre violência contra a mulher com este recorte?

Leda: Sempre ouvimos histórias e reportagens sobre a violência contra a mulher com especialistas falando de forma distante ou com depoimentos de mulheres que não podem mostrar o rosto porque ainda estão sob ameaça. O documentário Legítima Defesa faz um recorte a partir de histórias que chegaram a um limite, a um fim, mas que tiveram o mesmo inicio e meio de inúmeras histórias de violência de gênero em relações afetivas, e que muitas vezes acaba em feminicídio. Este recorte é então uma forma de provocar reflexão e mostrar esta realidade pelos relatos de mulheres “sobreviventes” que podem falar sobre tudo o que passaram e que as levou a um ato que nunca imaginaram que fariam.

Susanna: Uma das preocupações a respeito do recorte do filme era também mostrar mulheres num processo de reconstrução da vida após o trauma. E esse foi um critério importante na escolha das personagens. Abordar uma tragédia como essa deveria também implicar numa responsabilidade de apresentar uma luz no final do túnel para cada uma delas e uma perspectiva de vida após esse longo ciclo de violência. Nesse sentido, o filme cumpre o papel de narrar a violência, mas também acompanha um delicado e necessário movimento de auto perdão e redenção.

Sul21:  Como vocês chegaram às histórias e quais as maiores dificuldades que tiveram?

Sara: Foi feita uma pesquisa nos Tribunais de Justiça dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo em processos de homicídio dos últimos 10 anos com rés mulheres que alegaram ter agido em legítima defesa e cujas vítimas eram os próprios companheiros. A primeira dificuldade foi encontrar as mulheres através dos dados como endereço e telefone que constavam nos processos. A grande maioria não vivia mais nos endereços, e quando conseguimos contactar algum familiar a recepção era de desconfiança, não queriam falar ou falavam que a mulher estava morando em outro lugar e não falaria sobre isso. Foi feito também contato com defensores públicos, alguns lembravam de casos, mas não do nome ou qualquer outra informação sobre a mulher. Ainda assim três, delas foram localizadas graças à ponte com os defensores. Também assisti a três julgamentos e fiz o contato com as rés após a sessão. A segunda dificuldade foi lidar com o delicado estado emocional dessas mulheres para convidá-las a contar suas histórias. Das que foram encontradas, algumas não quiseram falar, outras toparam falar mas, por medo ou vergonha, sem mostrar o rosto. Por fim, algumas poucas que já estavam em um processo de reconstrução toparam participar do filme.

Sul21: No Brasil, não existem números oficiais de quantas mulheres mataram companheiros agressores para sobreviver. Existe alguma estimativa aproximada? A maioria consegue garantir o direito de legítima defesa ou enfrenta dificuldades para prová-lo?

Leda: Há um estudo do IPEA de 2013 que revela que os parceiros íntimos são os principais assassinos de mulheres. Aproximadamente 40% de todos os homicídios de mulheres no mundo são cometidos por um parceiro íntimo. Em contraste, essa proporção é próxima a 6% entre os homens assassinados. Neste índice acredita-se que a maior parte das mulheres tenha agido em legítima defesa. No entanto, não encontramos estudos com números mais precisos, especialmente quanto ao aspecto do encaminhamento no judiciário. Podemos falar dos casos que pesquisamos para o documentário, mas não fizemos uma pesquisa com metodologia científica que levasse a estatísticas. Nosso objetivo era conversar com mulheres e contar suas histórias, então buscamos o maior número de casos a partir de processos disponíveis em ferramentas de busca online nos tribunais de RJ e SP e também por indicação de defensores públicos que conversamos. Nos processos que tivemos acesso, 90% foram absolvidas. A absolvição, no entanto, nem sempre é rápida. Em alguns casos houve a absolvição sumária, mas muitas são levadas a júri popular e só então são absolvidas.

Produção do filme teve acesso a cerca de 50 processos, até encontrar as 3 histórias contadas nele | Foto: Divulgação


Sul21: Vocês ouviram mais de 50 histórias, até ter as três que aparecem no filme. Podem contar sobre alguns dos casos que mais as marcaram?

Sara: Na verdade tive acesso a 50 processos, mas entrevistei de fato cerca de 10 mulheres. A história que mais me marcou foi de uma mulher do interior do Rio que chegou a topar participar do filme, mas perto das filmagens desistiu. Ela era casada e teve dois filhos com um policial, e sofreu um ciclo de violência com requintes de crueldade durante os 10 anos em que se relacionou com ele. Um dia, no meio de uma violência sexual, ela conseguiu alcançar um revólver que estava em cima da mesa e deu um tiro fatal no seu  companheiro/algoz.  A mãe dele era vizinha do casal e sabia de tudo, mas segundo ela, nada podia fazer para impedi-lo. Logo após o fato, ela foi ver a nora na delegacia e disse “vou abrir mão da minha dor de mãe, mas não vou te deixar sozinha”, e em seguida contou tudo o que presenciou na audiência judicial. Todos os presentes na audiência ficaram muito emocionados, inclusive o juiz, que redigiu uma sentença de absolvição onde nota-se que ele realmente ficou tocado pelo caso.

Susanna: Foram histórias muito comoventes, mas a vida da Lenice, uma personagem que chegamos a gravar na primeira fase do projeto me tocou profundamente. Ela viveu uma vida inteira de violência e quando mencionei a Lei Maria da Penha, ela disse que para a mulher pobre, moradora de periferia, essa Lei não a contemplava devido a ausência total de dispositivos de proteção a essas mulheres. Não há abrigos suficientes e nem a agilidade necessária para evitar que esses homens se vinguem logo após a denúncia. É um fato que temos que refletir com muita atenção. Precisamos fazer com que a Lei seja cumprida, mas a proteção para quem faz a denúncia deve ser criteriosa e sem discriminação de classe social.

Sul21:  Qual a reação mais comum dos familiares, para com essas mulheres?

Sara: Na maioria dos casos os familiares, principalmente os filhos, são testemunhas oculares de todo o ciclo de violência e ficam ao lado das mulheres, as acolhem, ficam preocupados com o bem estar delas, as absolvem e torcem para que a justiça faça o mesmo.

Sul21:  Há uma compreensão por parte dos filhos? O que acha que leva a isso?

Sara: Sim. Numa casa onde existe violência doméstica é muito comum que os filhos, mesmo que não vejam, entendam e sintam o que está acontecendo. Em alguns casos, os filhos também são vítimas de agressões e ameaças do pai, inclusive há mulheres que agiram desta forma para defender os filhos.

Susanna: Apesar de absolvidas pela justiça, no fundo o que importa para essas mulheres é o perdão dos filhos que foram também testemunhas do histórico de violência vivido. Nossas personagens têm na parceria com os filhos a motivação principal para seguir adiante e reconfigurar a própria história.

Sul21: Em notícias sobre o filme, há muitos comentários relativizando “quando uma mulher é assassinada é feminicídio, quando é um homem é legítima defesa”. Essa visão foi algo que vocês tiveram de enfrentar durante a produção?

Leda: Ouvimos muito poucos comentários do tipo. Algumas pessoas que não entendiam muito bem o nosso trabalho questionavam se não estaríamos defendendo o homicídio como uma solução para o problema da violência doméstica, mas é claro para quem assiste ao filme que esta não é nossa posição.

Cartaz de “Legítima Defesa” | Foto: Divulgação

Susanna: O filme, de modo geral, teve uma adesão muito forte e foram poucos comentários como esse. Só quem realmente desconhece completamente os números relacionados a violência contra a mulher pode achar que estamos relativizando o ato cometido por essas mulheres. O fato é que morrendo a mulher ou o homem, o que constatamos é que a cultura machista está presente ainda muito forte em nossa sociedade e faz vítimas todos os dias.

Sul21: O que ele diz da nossa sociedade?

Leda: Este tipo de comentário revela que nossa sociedade (ou uma parte dela) não consegue enxergar suas injustiças estruturais, como a desigualdade entre homens e mulheres. Relativizar o feminicídio, que é o triste fim de muitos casos de relações dominadas pelo homem em nossa sociedade patriarcal e comparar com o ato extremo da mulher que vive sob violência e ameaças, é ignorar a vulnerabilidade da mulher na sociedade e nas relações familiares, é dizer que homens e mulheres vivem em situação de igualdade, o que é uma ilusão.

Susanna: Os números de violência contra a mulher falam muito a respeito do país machista em que vivemos. Historicamente, o Brasil é um país que sempre oprimiu a mulher. Desde as índias, negras e até mulheres que chegaram ao poder, todas são cotidianamente vilipendiadas. O que preocupa é que há políticos que têm um claro discurso de ódio contra as mulheres e nenhuma punição acontece, muito pelo contrário.

Sul21: Como é, para essas mulheres, seguir em frente depois de ter chegado ao extremo de matar alguém para poder seguir com a própria vida?

Sara: Elas vivem um processo de luto bem traumático, se culpam, se isolam, vivem com medo. Só depois de alguns anos do fato é que algumas poucas começam um processo de reconstrução e tentam se afirmar diante da vida. Mas a dor por terem cometido tal ato as acompanha para sempre.

Susanna: O processo de reconstrução de vida delas é doloroso, cheio de culpas ainda, mas é de uma beleza imensa também. De certa forma, é um renascimento das cinzas, é de uma força ímpar.

Sul21: Como foi para vocês, enquanto mulheres, contar essas experiências?

Susanna: Há 20 anos dirijo filmes tendo mulheres como protagonistas das histórias que filmo, seja na ficção ou no documentário, e sempre me sinto desafiada por elas. O documentário é o resultado de um encontro. É sempre a nossa intenção de filmar somada à disposição do personagens em se revelar diante das câmeras. Nesse caso, eu tinha um desejo claro de mostrar uma possibilidade de vida futura apesar da violência,  e elas ao se deixarem filmar tinham claramente o desejo de alertar outras mulheres para o perigoso ciclo de violência postergado. Nesse processo, conheci as mulheres mais fortes com as quais cruzei na vida. Serão sempre referências de resistência, força e superação pra mim. Eu, de certa maneira, faço filmes para ser atravessada pelo que a obra me diz, e nesse caso fui literalmente consumida por essas histórias e saí mais forte e com mais esperança no futuro das mulheres. Pude perceber que, mesmo em meio a tanta dor, há na força feminina uma pulsão de vida que impulsiona as forças que movem o mundo. E é muito bom estar do lado delas.