Para especialista, crise no Ceará é disputa por mercado de drogas

“A questão é: a Administração Penitenciária do Ceará vai garantir a vida de um preso da FDN em um pavilhão com maioria de PCC? Parece-me que, como já vimos antes no país, haveria massacres nas prisões”, alerta Gabriel de Santis Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), autor de diversos artigos e livros sobre o crime organizado, como Irmãos: uma história do PCC, e diretor científico do Centro de Estudos da Metrópole.

“Um quilo de cocaína na fronteira com a Bolívia custa menos de 10 mil reais, mas numa esquina de Londres custa mais de 400 mil reais, vendido no varejo. Você conhece algum mercado mais lucrativo? Fortaleza se tornou um ponto muito relevante do mercado exportador de cocaína, nos últimos anos”, afirma Feltran.

A advertência do especialista ocorre no momento em que o Ceará vive uma onda de violência a partir de ações de grupos criminosos organizados. Dos presídios, quatro facções organizaram atentados que interferiram no cotidiano dos moradores de Fortaleza e cidades no interior e litoral do estado, afetando o comércio, o trabalho e as saídas às ruas.

A onda de violência eclodiu depois do governo anunciar a criação da secretaria de Administração Penitenciária, nomeado o general Mauro Albuquerque para chefiar a pasta.

O general foi responsável por administrar crises penitenciárias em Natal, e afirmou não reconhecer as facções, o que levou a anunciar que iria misturar presos de grupos rivais nas mesmas celas.

Desde então uma onda de violência assola o estado, com prédios e ônibus incendiados. A Força Nacional foi acionada para ajudar na segurança, e neste fim de semana o governador Camilo Santana aprovou um pacote de medidas para conter a crise. Confira abaixo a entrevista com o especialista. 

CartaCapital: Por que as facções do norte e nordeste, agora em especial as do Ceará, estão com tanta força?

Gabriel de Santis Feltran: Porque um quilo de cocaína na fronteira com a Bolívia custa menos de 10 mil reais, mas numa esquina de Londres custa mais de 400 mil reais, vendido no varejo. Você conhece algum mercado mais lucrativo? Fortaleza se tornou um ponto muito relevante do mercado exportador de cocaína, nos últimos anos. Essa riqueza é disputada. A história urbana de desigualdade atroz, as políticas de segurança das últimas décadas, bem como a história do mundo do crime local também condicionam esse fenômeno. É preciso entender cada lugar.

CC: Uma das medidas anunciadas pelo secretário Mauro Albuquerque é não separar presos por celas conforme a facção a que o preso pertence. Essa é uma boa medida? Por que ela pode ter sido uma das grandes causadores dos ataques?

GSF: A questão é: a Administração Penitenciária do Ceará vai garantir a vida de um preso da FDN em um pavilhão com maioria de PCC? Parece-me que, como já vimos antes no país, haveria massacres nas prisões. O Estado vai se responsabilizar pelas mortes em suas dependências? A justiça vai cuidar desses casos? Ou vai construir muros entre as facções em seguida? Quantos foram responsabilizados pelos massacres que vimos em presídios, de 1992 a 2017? Num país que investiga 15% de seus homicídios, se muito, não me parece inteligente ignorar a realidade e agir como se não existissem facções criminais.

CC: Ano passado vimos uma onda de ataques possivelmente orientadas de dentro dos presídios em Minas Gerais. Há uma década pelo menos não vemos esse movimento em cidades como São Paulo, por exemplo.

GSF: PCC é diferente de outras facções, o tráfico no varejo em São Paulo funciona de maneira muito diferente de Belo Horizonte, como as cadeias também. Cada lugar é um lugar, já disse o rap. Imagina-se que o Brasil teria uma solução mágica para a violência, e qual é ela? Mais encarceramento e ostensividade policial, exatamente o que fazemos há 30 anos. Antes de mais nada, é preciso desmistificar essa ideia. Mais do mesmo nos levará a mais do mesmo – curvas contínuas de crescimento da violência e insegurança no país. Deveríamos primeiro entender o que acontece em cada lugar, para entender como agir.

CC: Mas nos últimos anos tem sido frequente essas ondas de ataques em estados do norte e nordeste, e em alguns casos também logo na primeira semana do ano. Existem diferenças entre as facções do norte e nordeste em relação ao restante do país?

GSF: O Rio de Janeiro ficou conhecido como um lugar violento nos anos 1980; São Paulo, nos anos 1990, o nordeste a partir de 2010. A Colômbia se tornou famosa por sua violência nos anos 1980, a América Central nos anos 1990, o México, a partir de 2006. As explosões de violência correspondem aos momentos em que: i) os mercados ilegais – sobretudo o de cocaína – se estabelecem localmente em escala importante e disputam corações e mentes para o tráfico, extremamente lucrativo; ii) a repressão estatal se volta aos pequenos operadores, retirando-os da esquina e os substituindo por outros, ampliando o exército criminal entre cadeias e quebradas. Essa dinâmica faz com que cada caso seja um caso, e que cada facção tenha suas particularidades, sem sombra de dúvida.

CC: O que faz que uma onda de violência como essa rebente?

GSF: Em primeiro lugar, a disputa entre diferentes grupos, estatais e ligados ao mundo do crime, pela riqueza produzida nos mercados ilegais – drogas, armas, contrabando, veículos roubados etc. Como em toda guerra, há dinheiro em jogo. Mas seria pouco considerar que só há disputa por dinheiro. As guerras internas ao mundo do crime e dele com o Estado hoje implicam em concepções diferentes acerca de como deve ser o mundo, dos valores e dos princípios da ordem urbana. Projetos diferentes de poder, que se encontram apenas na celebração do dinheiro como mediador universal das relações sociais.

CC: A crise teria começado no Ceará após o anuncio de medidas mais ostensivas feito pelo novo secretário. Essas medidas funcionam?

GSF: Em Segurança Pública, à direita ou à esquerda, as propostas mais gerais têm sido sempre as mesmas – ampliação do encarceramento (como se a cadeia isolasse alguém do crime), e ostensividade policial (respondendo às pressões sociais por controle). Essas medidas nos levaram ao que temos hoje, porque elas não apenas não controlam os mercados ilegais, como produzem um exército especializado para operá-lo entre os grupos mais pobres da população. Sempre que se prende alguém, estamos ampliando esse exército porque um novo operador vai aparecer do lado de fora da cadeia, substituindo o que foi preso. Além disso, as cadeias são os centros de todas as facções. O estado que mais encarcerou, São Paulo, exportou a maior facção do país. Se não revisarmos esse modelo, a espiral de violência e conflito seguirá subindo.

CC: Quais são as políticas públicas mais adequadas para lidar com o problema?

GSF: A curto prazo, em primeiro lugar deve-se conhecer o que acontece em cada estado, em cada região. A desinformação hoje é gritante. É preciso ações de inteligência. Em segundo lugar, deve-se priorizar a regulação dos mercados ilegais, algo que se faz por via do próprio mercado, das leis ou da orientação da ação repressiva para longe da base da pirâmide criminal. Em terceiro lugar, há que se priorizar o esclarecimento de homicídios e outros crimes violentos, que causam a maior sensação de insegurança. A longo prazo, é evidente que diminuir as desigualdades e melhorar as ofertas de trabalho e educação teriam impacto fundamental.

CC: Fala-se muito das superlotações como um dos fatores para a força das facções, ainda assim as política encarceramento costumam ser apoiadas massivamente pela população. Isso é um problema na visão do senhor? O senhor atribui essa diferença a quê?

GSF: A população não vê a situação de maneira técnica, mas sabe que não é mais possível viver com esse nível de insegurança. Os mais pobres não apenas sabem que o encarceramento não resolve nada, como vivem suas consequências na pele. As elites imaginam que prender isola alguém do crime, que pune, que ressocializa. Quem convence esses grupos de que trará uma solução, tem seu apoio. O problema piora, entretanto, quando essa solução tão prometida não vem. O nível do conflito sobe. Temos visto isso há 30 anos. É responsabilidade de quem faz pesquisa nesses temas, e de quem está envolvido nas políticas relativas a essas áreas, ter essa visão mais global.

Fonte: Carta Capital