Presídios federais também podem ‘organizar as facções’, apontam especialistas

Gregório Mascarenhas

Desde maio deste ano, uma área que era propriedade da Fepagro – uma fundação de pesquisa agropecuária que o governo estadual extinguiu – em Eldorado do Sul, cidade que fica na margem oeste do Guaíba, já pertence à Secretaria de Patrimônio da União. Ali, em um terreno do Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, entre a BR-116 e o lago, próximo ao bairro Sans Souci, será instalado o provável sexto presídio federal a ser construído no Brasil.

Especialistas e governos, entretanto, divergem quanto às possíveis consequências da instalação da penitenciária: para a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) e para o Governo Federal, trata-se de uma conquista para diminuir os impactos do caos carcerário vivido no Rio Grande do Sul e isolar presos que fazem parte de facções organizadas. Para pesquisadores e ativistas, todavia, representa uma possibilidade de deterioração nas condições de segurança, e, mais do que isso, uma política equivocada de condução do sistema carcerário por conta do provável encontro de grupos criminosos que antes não tinham contato.

A maioria dos governos de estados cogitados para a construção de unidades federais rejeitou fazer parte do plano. O Rio Grande do Sul, todavia, através do governador José Ivo Sartori (PMDB) e do secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, diz que “atuou fortemente” para que o Estado tivesse uma prisão federal de segurança máxima. “Ambos estiveram por diversas oportunidades em Brasília, pleiteando a construção do presídio em solo gaúcho, tanto no Ministério de Justiça quanto diretamente no núcleo do governo federal, através de reuniões com o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha”, disse a SSP em nota enviada ao Sul21.

Presídio federal será instalado em um terreno do Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, pertencente à extinta Fepagro, entre a BR-116 e o lago, ao sul do bairro Sans Souci. Google Maps/Reprodução.

Surgido em 2006, ainda no primeiro mandato do governo Lula, o sistema consiste na construção de unidades prisionais de segurança máxima no país. Há, hoje, quatro estabelecimentos em atividade – em Catanduvas, Campo Grande, Mossoró (Rio Grande do Norte) e Porto Velho (Rondônia) – e mais um já em construção no Distrito Federal, ao lado do Complexo Penitenciário da Papuda, ainda que com três anos de atraso na obra. O governo federal anunciou às pressas, em janeiro, após o massacre no Amazonas, a construção de mais cinco unidades, como parte do Plano Nacional de Segurança – e o Rio Grande do Sul faz parte disso.

Cada presídio pode abrigar no máximo 208 detentos, mas o objetivo é que exista uma parcela das vagas sempre disponível, já que há uma rotatividade dos presos, que não cumprem toda a pena na unidade federal, apenas uma parte como Regime Disciplinar Diferenciado. Os presos – sempre de “alta periculosidade” e “que possam comprometer a segurança nos seus estados de origem” – ficam em celas individuais,e, segundo o Ministério da Justiça, “têm um aparato tecnológico composto por modernos equipamentos de última geração que garantem a plena segurança e vigilância local”.

O primeiro temor levantado – sobretudo por autoridades locais em estados e municípios que poderiam receber a construção – é o de um “risco de contaminação”, isto é, que nas regiões sede passem a atuar de maneira mais presente os grupos criminosos que disputam territórios nacionalmente – o que pode ocasionar aumento dos crimes violentos na região. Em Santa Maria, cidade na qual o secretário de Segurança Pública Cezar Schirmer foi prefeito por dois mandatos, a possibilidade de instalação de um presídio federal no estado não causou uma boa recepção – pelo menos entre o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) e instituições de segurança como a Polícia Civil, a Polícia Federal e a Superintendência de Assuntos Penitenciários (Susepe), conforme conta o chefe do Executivo. Em janeiro, quando ainda não havia uma decisão quanto à cidade onde a penitenciária seria construída, Pozzobom gravou um vídeo no qual afirma que a instalação traria problemas para a região.

“Tivemos uma conversa muito forte sobre o presídio federal vir para o Rio Grande do Sul e para qual município. Em hipótese alguma nós vamos querer esse presídio aqui em Santa Maria. Não agrega nada, não vai trazer nada de valor. Bem pelo contrário, vai trazer aqueles criminosos que não são daqui. A decisão está tomada”, disse o prefeito. Ele chegou a dizer, inclusive, que tentaria barrar judicialmente a instalação em qualquer município da Região Central. O município de São Sepé, próximo a Santa Maria, se habilitou, à época, para receber a penitenciária.

A maioria dos governos de estados cogitados para a construção de unidades federais rejeitou fazer parte do plano. O Rio Grande do Sul, todavia, através de Sartori e do secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, diz que “atuou fortemente” para que trazer presídio. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Schirmer já declarou, em uma coletiva de imprensa durante a inauguração de uma das alas do Presídio de Canoas, que não acha o risco de contaminação uma discussão relevante. “As facções estão no Rio Grande do Sul e em qualquer Estado brasileiro, independente de ter presídio federal ou não. Eu percebo que há essa discussão, mas ela é irrelevante do meu ponto de vista. Se puder ter um presídio federal em cada estado brasileiro, ótimo. Isso vai minorar a crise”, argumentou, à época.

Para a socióloga Camila Nunes Dias, que é professora da UFABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, ainda que não se possam fazer afirmações consistentes sobre as implicações da construção dos presídios na dinâmica local da segurança pública, há um risco comprovado como causa da reunião de criminosos de distintas regiões e facções do país dentro de prisões federais. “Não há estudos sobre o Sistema Penitenciário Federal, e muito menos sobre o impacto que as penitenciárias têm no onde são instaladas”, explica a socióloga. O impacto mais agudo, diz ela, vem do envio de presos a uma penitenciária federal em outro local. “Pode fazer com que eles tenham contato com detentos de outras facções. Quando retornam, podem inserir grupos locais na dinâmica nacional ou fortalecer os grupos que já existem. Esse impacto do preso enviado é mais claro como negativo, no sentido de uma maior organização do crime”, adverte a especialista.

O exemplo utilizado por ela é o da Família do Norte, facção que se aliou ao Comando Vermelho, uma das maiores organizações criminosas do Brasil, dentro do Presídio Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O grupo, que ficou conhecido no começo deste ano por conta do massacre de 56 presos no Presídio Anísio Jobim, em Manaus, articulou-se nacionalmente como uma facção que se opõe ao Primeiro Comando da Capital, de São Paulo. “É claro que nesse caso a articulação do grupo decorre e tem relação direta com a ida de presos para o Sistema Penitenciário Federal e seu contato com os membros das facções já existentes. Embora a Família do Norte tenha sido criada para evitar o avanço do PCC na região norte, ela segue inclusive seu o modelo de organização e estruturação”, explica a pesquisadora.

Há um questionamento, portanto, em relação à recente transferência de 27 presos gaúchos considerados líderes de facções para prisões federais de outros estados. A operação – com o midiático nome de “Pulso Firme” – é ostentada pelo governo como uma das grandes vitórias da segurança pública local nos últimos tempos. Antes disso, no começo do ano, a transferência de duas lideranças do crime foi listada pela administração estadual como uma das responsáveis pela alegada pacificação que ocorre em Porto Alegre nos últimos meses. “Pode e deve ser listado como um dos fatores que contribuíram para a redução de 10,2% dos índices de homicídios dolosos na capital”, disse a Secretaria de Segurança Pública em nota.

Para Marcos Rolim (E) e Camila Nunes Dias (D), Estado organiza as facções criminosas ao proporcionar contato dentro de presídios, sejam eles federais ou não. Foto: Guerreiro | Agência ALRS

O jornalista e sociólogo Marcos Rolim, especialista em segurança pública, diz que o Estado “já deveria ter aprendido” sobre isso. Os casos em que a transferência de presos acaba por gerar uma situação mais difícil do que a anterior é, para ele, “algo que já aconteceu aqui dentro do Rio Grande do Sul com a transferência de presos de Porto Alegre para o interior”.

O caso de Pelotas, para ele, é emblemático: “é uma cadeia superlotada, com cerca de mil presos, uma média de 12 ou 15 presos por cela, um quadro muito grave de degradação da execução penal. Uma realidade que impacta a realidade da segurança pública da cidade, que passou a ter um aumento na taxa de homicídios, também facilitado pela disputa entre duas facções criminais da cidade: os ‘Tauras’ e os ‘Mata Rindo’”.

Os primeiros são ligados aos “Manos” e os segundos aos “Bala na Cara”, dois grupos originalmente atuantes em Porto Alegre. “Formaram-se a partir dessa relação criada com as facções da Capital. Desde alguns anos – é algo que não começou com o governo atual –, sempre que surgia um problema aqui na Região Metropolitana, enviavam os presos para o interior. Lá eles organizam a facção ou criam alianças a um grupo já existente para estabelecer hegemonia. Hoje, o Rio Grande do Sul inteiro está mapeado pelas facções da capital e há uma disputa violenta entre elas. Quem criou isso foi governo estadual, com a política de levar presos para o interior. Agora eles avançaram: vão trazer presos perigosos do Brasil para o Rio Grande do Sul”, alerta.

Sequer a relação de causa e conseqüência entre o envio dos dois presos, no início do ano, e a alegada diminuição da violência em Porto Alegre, para Rolim, é válida. “São dinâmicas totalmente independentes de transferência de presos ou não. O que a secretaria faz é dar um atestado de absoluta incapacidade de apresentar evidência”, argumenta, dizendo que “o fenômeno é muito mais complexo”. A experiência que envolve muitos outros estados brasileiros, afirma, mostra que quando se desloca presos – ou mesmo quando se prende uma liderança importante do tráfico – “há uma tendência de aumento da violência na região, pois a disputa de sucessão pode desencadear guerras internas”.

“As pessoas têm a sensação de que algo está sendo feito, e as autoridades, portanto, têm a possibilidade de faturar politicamente com essa sensação”, critica Marcos Rolim. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sistema Federal de Penitenciárias é ‘equivocado desde o início’

Para além das implicações nas dinâmicas locais, especialistas têm consenso de que a própria política de fundação do Sistema Penitenciário Federal (SPF) é problemática desde sua gestação: além da manutenção cara, os resultados são questionáveis ou contraproducentes. Rolim, que foi deputado federal até 2003, conta que chegou a conversar com colegas, à época, sobre os riscos da implantação das prisões. “É como se o Brasil quisesse construir um sistema federal de Supermax [modelo estadunidense de unidades prisionais de segurança pública]”, explica.

O SPF surge inspirado no modelo dos governos do Estado de São Paulo, que haviam criado o Regime Disciplinar Diferenciado baseado. “É uma invenção dos governos tucanos que foi incorporado pelo governo Lula, que envia ao Congresso Nacional um projeto de reforma da legislação que introduz na Lei de Execução Penal a possibilidade do RDD. Isso foi aprovado na Câmara com votos da esquerda. Começa por aí a ideia de que haveria um sistema federal de contenção extremamente rigoroso destinado a chefes de quadrilha ou pessoas especialmente perigosas. Esse é o conceito que orienta tudo”, conta.

A lei estabelece um prazo limite para que os presos sejam transferidos dos estados e permaneçam dos presídios, portanto eles vão e voltam, e o critério dos escolhidos, para Rolim, é muito subjetivo. “O que acontece é que são enviados presos que são problema para os estados por qualquer razão – porque lideraram uma rebelião, porque agitam a cadeia”, exemplifica. Só que essa dinâmica fez com que centenas de presos brasileiros fossem enviados para um sistema no qual eles se encontram em um ambiente propício à disseminação das facções. “Hoje, as pessoas que pesquisam isso notam que o tema da mistura de presos no sistema federal viabilizou a nacionalização das facções, especialmente no caso do PCC e do CV”, explica Rolim.

O problema, para Camila, é que o SPF se torna central na política de segurança e prisional do governo federal. “O equívoco vem desde o início, mas, nesse atual governo, está se apostando nisso”. Para ela, não há qualquer impacto de redução da violência quando se constrói mais um presídio. “Ao contrário: as prisões, hoje, são centros de organização do crime. A gente vai continuar construindo prisões estaduais ou federais, seja lá o que for, e tenho absoluta certeza que não vamos resolver o problema da insegurança, da violência e do crime no Brasil. Daqui a dez anos vamos falar sobre as mesmas coisas. É assim há trinta anos, pelo menos”, critica.

Rolim diz que quando não há uma “política de segurança” ou um “conceito que define as ações”, é preciso preencher esse vazio: o anúncio pelo governo estadual de que será construído um presídio federal no Rio Grande do Sul, para ele, é justamente esse elemento. O exemplo utilizado por ele é a convocação, por parte do governo do Rio de Janeiro, das Forças Armadas para ocupar as ruas. “Ninguém pergunta quanto custa essa operação e quais são seus resultados. Neste caso, é uma das mais custosas do mundo: um milhão de reais por dia. Os resultados, entretanto, são nulos. Mas as pessoas têm a sensação de que algo está sendo feito, e as autoridades, portanto, têm a possibilidade de faturar politicamente com essa sensação. Acho que a ideia do presídio federal é essa”, critica.

O Rio Grande do Sul tem, hoje, cerca de 35 mil presos. Somente 3%, porém, estão lá por homicídios, por exemplo. “A gente não prende quem deveria prender”, diz Rolim. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Alternativa seria construção de pequenas unidades prisionais

O Rio Grande do Sul tem, hoje, cerca de 35 mil presos. Somente 3%, porém, estão lá por homicídios, por exemplo. “A gente não prende quem deveria prender”, diz Rolim. O argumento governamental de que deve aumentar o número de vagas no sistema prisional – “ou faz isso ou deixa de prender”, como declarou Cezar Schirmer recentemente – é, portanto, “voltado para a opinião pública”, afirma o especialista. Falta, para ele, até mesmo um senso crítico por parte da grande mídia, que não pergunta para o gestor “quem é que se está prendendo”.

“Essa pergunta é muito embaraçosa para os governos. Matadores, em geral, a polícia não prende porque para isso é necessário alguma investigação criminal, e isso falta. Quase todas as prisões feitas são as chamadas ‘em flagrante’ o que não necessariamente a prisão realizada quando o policial vê alguém praticando um crime. Isso é raríssimo. Em geral, acontece o chamado “flagrante presumido”, que ocorre em até 24h da ocorrência do crime. São, em geral, crimes de roubo e furto, ou de drogas. Não se prende homicídio, estupro e corrupção em flagrante. Os delitos mais graves não são reprimidos pela polícia – e não porque ela necessariamente não queira, mas porque não tem meios para chegar ao autor. Lotam-se, então, presídios com autores de crimes menos graves”, explica.

Uma alternativa possível, para Rolim, é a de que se construam pequenas unidades prisionais que podem inclusive ser geridas pelos municípios. “Em geral, quando perguntamos para a SUSEPE sobre o custo de um presídio – e isso acontece no Brasil inteiro – as pessoas que tratam da construção partem de uma concepção de presídio que é uma caixa de concreto para isolar pessoas”. Com muros muito altos, paredes reforçadas, estruturas de concreto em todos os lados e no chão, essas unidades, além de muito caras, são em geral “completamente disfuncionais” para que uma “execução penal decente seja praticada”.

Há, para ele, uma concepção cujo centro é o isolamento da pessoa, sem espaço para educação ou trabalho. “Se os municípios tivessem condições de avançar nessa área, elas não precisariam seguir esse modelo. A maioria dos presos não precisaria ter esse grau de contenção que os presídios tradicionais oferecem. Poderiam ter inclusive um regime de contenção muito menor. Espécies de “presídios escola” ou “presídios fábrica” que tivessem condição de oferecer formação e trabalho. É outro conceito que existe especialmente na Europa e que no Brasil sequer conhecemos”.

A experiência das Associações de Proteção e Assistência ao Condenado (APACs) é citada por Rolim como a única exitosa na área prisional no país. Trata-se de “pequenas instituições que podem abrigar cem pessoas ou duzentas, que estão basicamente no interior de Minas Gerais e São Paulo, extremamente baratas. Grande parte do trabalho é voluntário. Há uma baixíssima taxa de reincidência criminal”, explica. É, para ele, um modelo que deveria ser universalizado.

Sairíamos, para ele, da “lógica das corporações”, envolvendo a sociedade civil. “É preciso romper esse sistema que empilha seres humanos, organiza facções e devolve pessoas mais perigosas. Querem, porém, continuar investindo nisso. Faz tantos anos que falo isso que perdi as ilusões com o Estado. Ele não tem condições de entender essas coisas – e quem entende não tem coragem de fazer. Estamos diante dessas duas possibilidades: a absoluta incompreensão ou a falta de coragem. Cada governo está sempre pensando na eleição futura e ninguém contesta o senso comum, as opiniões não são contrastadas pela inteligência e pela evidência”, lamenta.

Fonte: Sul21