Com mais de mil processos aguardando audiência, demora da Justiça causa angústia em Caxias do Sul

LEONARDO LOPES / GAÚCHAZH

Lentidão incomoda famílias de vítimas e de réus presos que aguardam para se defender.

O relatório das varas criminais de Caxias do Sul mostra que 1.076 processos aguardam por audiência. São crimes de roubos, tráfico de drogas, estupros e acidentes de trânsito que estão empilhados nos cartórios. Para fevereiro, há apenas 29 audiências previstas nas três varas criminais de competência genérica — a 1ª Vara Criminal é especializada nos crimes contra a vida. A baixa produtividade também aparece em março, que tem apenas 11 dias com audiências agendadas.

A explicação é a falta de juízes criminais na segunda maior cidade do Rio Grande do Sul. Com a anunciada saída da magistrada Gabriela Irigon Pereira, já a partir de fevereiro, apenas uma das quatro varas criminais terá um juiz titular. As outras três terão as questões urgentes decididas por juízes substitutos. A tendência é que a pilha de processos aumente. Em 2020, foram movimentados 10.254 entre a 2ª, 3ª e 4ª varas criminais.

Enquanto aguarda um estudo sobre a necessidade de criar mais quatro juizados na comarca, a única medida anunciada pelo Tribunal de Justiça foi um regime de exceção na 1ª Vara Criminal. Desta forma, há mais dois magistrados atuando em processos sem réus presos, enquanto o juiz substituto, Silvio Viezzer, decide as audiências e júris que tem réu presos — que possuem prioridade conforme a legislação.

O regime de exceção é a explicação para a 1ª Vara Criminal ter 55 audiências agendadas entre  13 dias de fevereiro — contra as 29 das outras três varas criminais. Ainda assim, existe um longo percurso pela frente. A chamada Vara do Júri está há 28 meses sem um titular e acumula 1,2 mil processos ativos e 300 casos prontos que aguardam apenas pelo julgamento.

“Vítimas viram um número, uma estatística”

A pilha de processos que se acumula nas varas criminais de Caxias do Sul são, na verdade, histórias que aguardam por justiça. São famílias que perderam entes para a violência. Suspeitos que estão presos e desejam provar sua inocência. E, claro, réus culpados que aproveitam da lentidão do Judiciário para ficarem impunes.

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Página do Pioneiro de 27 de junho de 2011Reprodução

Esta angústia diante da demora da Justiça caxiense é relatada pela família de Reni Mattana. O empresário foi assassinado em junho de 2011, quando tinha 47 anos. O réu, Juliano dos Santos Brembati, foi denunciado pelo Ministério Público (MP) em novembro daquele de ano. Ao longo da década, foram seis audiências realizadas e outras quatro canceladas. A sentença de pronúncia foi publicada no último dia 24 de novembro decidindo que o caso irá a júri, ainda sem data marcada.

— Irá completar 10 anos em junho. São 10 anos sem ter uma resposta. É muita morosidade, muita tristeza, é ruim falar disso. Amigos e familiares perguntam, mas não temos o que responder.  Não tem como esquecer, não pode ficar impune — emociona-se a viúva Liamar Smiderle.

Segundo a denúncia do MP, Brembati matou Reni Mattana em razão de uma dívida —estimada em R$ 600 mil durante a investigação policial. O réu teria marcado de fazer uma parte do pagamento na manhã daquele 24 de junho de 2011, mas levou um revólver .357 até  escritório do bairro Jardim América e matou o empresário com quatro tiros no peito.

Durante a investigação policial, Brembati confessou a autoria dos tiros e alegou legítima defesa. No interrogatório judicial, o réu preferiu exercer seu direito constitucional de permanecer em silêncio.

— O réu é confesso, foi preso e logo depois solto. Não precisa ser elucidado, pois já está. Só que os passos avançam muito pouco por vez. Quando acompanhamos outros casos semelhantes, sabemos o quanto que estas famílias irão continuar sofrendo até que se tenha “algum tipo de justiça”. Caímos numa vala comum, em que (vítimas) viram um número, uma estatística, e pouco o Estado faz para mudar. A perda é irreparável. E a sensação é que a impunidade compensa — desabafa o irmão Luiz Carlos Mattana.

O empresário Reni Mattana deixou esposa, uma filha que tinha 17 anos na época, e cinco irmãos.

— Ele fazia aniversário em 29 de dezembro, mais um ano de vida que uma pessoa tirou de toda nossa família. Cada data é uma dor. Ter que passar o Natal sem o marido, sem o pai… algo precisa ser feito, não pode ficar impune — afirma a viúva.

Diante da demora, os familiares de Mattana decidiram contratar um escritório de advocacia. O irmão Luiz Carlos ressalta que a família sabe que a acusação cabe ao MP, mas faz questão demonstrar a sua indignação e a ânsia pela Justiça.

— Além da demora natural do Judiciário, também teve contribuição do réu, que por várias vezes foi difícil de encontrar, mas o principal foi a demora para marcação de audiências. A grande demora foi pela ausência de um juiz. Caxias do Sul precisa ter dois juízes (na Vara do Júri), no mínimo. É inconcebível a segunda maior cidade do Estado ficar sem um juiz específico para esta vara por tanto tempo — afirma o advogado Airton Barbosa.

O réu Juliano dos Santos Brembati é representado pelos advogados Ivandro Bitencourt Feijó e Maurício Adami Custodio, que se manifestaram por nota:

— É um caso complexo que envolve oitiva de diversas pessoas, especialmente no que tange às práticas comerciais das partes. Estamos ansiosos pelo julgamento para que possamos demonstrar fidedignamente a verdade dos fatos. Não apenas a verdade contada para ludibriar ouvidos não atentos que vem sendo propagada desde o princípio.

“Meu filho foi esquecido na cadeia”

O princípio fundamental em direito penal estabelece que, na dúvida, o benefício seja do réu. Em outras palavras, faltando certeza, é melhor absolver um culpado que não se pode provar do que condenar um inocente. O Código Processo Penal também define a prisão como a última medida cabível. A morosidade do Judiciário caxiense acaba por limitar a defesa dos réus, o que pode prejudicar inocentes. Esse argumento é apresentado pelo coordenador do grupo de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Caxias do Sul, Andrei Felipe Valandro.

Para exemplificar, o advogado cita o caso de um cliente seu, identificado apenas como Jeison. O réu de 30 anos foi preso preventivamente no último dia 27 de julho durante uma investigação da Polícia Civil sobre tráfico de drogas. Sete meses depois, o processo ainda não teve audiência marcada.

— É uma prisão que não tem lapso de tempo definido. Tentamos três vezes o habeas corpus, inclusive requerendo a tornozeleira eletrônica, mas a juíza não aceitou. Esta preventiva é baseada apenas na garantia da ordem pública. Só que o meu cliente é réu primário, tem residência e trabalho fixo e foi preso sem nenhuma grama de droga — reclama o advogado Valandro.

A falta de respostas incomoda a família do réu. O pai, Luis de Souza, 56 anos, afirma que o filho trabalha com a venda de carros e só foi envolvido por causa de uma conversa em um aplicativo de celular.

— Pegaram na casa de um rapaz alguns quilos de maconha. O nome do meu filho estava no telefone desse rapaz, por isso, colocaram ele nessa investigação. É tudo por uma conversa de telefone, um amigo de infância dele, estudaram juntos. E até agora não houve nenhum parecer (da Justiça). É uma demora excessiva para designar uma audiência. Parece que não querem desenrolar o caso. Há crimes muito mais graves que as pessoas (acusadas) já estão soltas — desabafa Souza.

Jeison está recolhido na Penitenciária Estadual no distrito do Apanhador. O pai relata que, do lado de fora, a esposa e a enteada do filho passam dificuldades para pagar as despesas e o aluguel.

— O pior fica para a família. Estamos expostos. Todo mundo julga. É uma situação que pode estragar toda a nossa vida. Já são sete meses. Meu filho foi esquecido lá. De lá de dentro, ele não consegue se defender. O advogado tenta, mas não teve acesso ainda. Tem que esperar até o dia que o juiz irá pegar aquela pasta cheia de papéis, que pode ser a dele ou de outro esquecido — lamenta.

O processo tramita na 2ª Vara Criminal e possui outros cinco réus. O advogado Valandro ressalta que, com a anunciada saída da juíza Gabriela Irigon Pereira, a situação fica ainda mais indefinida.

— O meu cliente se considera inocente, é horrível esta situação. Ainda mais no Apanhador, que é um ambiente sabidamente dominado por facções. Quando marcar a audiência, será para daqui a três meses, diante do acúmulo de trabalho. O réu está numa prisão por tempo indeterminado, o que é inaceitável. É uma antecipação de cumprimento de pena. Se vier a ser absolvido, é um tempo perdido da vida. Todo réu merece uma resposta, mesmo que seja uma condenação de uma vez.

O coordenador de Ciências Criminais da OAB Caxias ressalta que o caso de Jeison não é atípico, mas sim o que acontece em todos os processos criminais. Entre início de um processo com réu preso e a sentença, o trâmite na comarca está levando quase dois anos, afirma Valandro.