Entre o medo e a necessidade: Indicadas para liderar retorno, escolas de Educação Infantil enfrentam dilema

Luciano Velleda

Depois de cinco meses de pandemia do novo coronavírus no Rio Grande do Sul, poucos assuntos mexem tanto com a sociedade quanto a perspectiva de retorno às aulas presenciais. Na sequência da reabertura do comércio, restaurantes e outras atividades econômicas, o tema tem mobilizado famílias, educadores e médicos desde que o governo Eduardo Leite (PSDB) propôs a retomada das aulas a partir do dia 31 de agosto. Dois aspectos principais estão no centro do debate: o atual momento da doença no Estado, com altos índices de contágio e mortes; e o retorno iniciar pela educação infantil, com crianças de 0 a 5 anos de idade, que têm mais dificuldade de assimilar medidas de proteção e, embora sejam menos afetadas pelo coronavírus, podem ser agentes de transmissão do vírus para os adultos.

No último dia 13, Leite reconheceu que a proposta de retomar as aulas presenciais, começando pela educação infantil, é uma decisão relacionada à abertura das atividades econômicas. “Em função da nossa economia estar, cada vez mais, retomando as atividades, precisamos ter um local para deixar as crianças”, explicou, durante transmissão por rede social. “Vários pais e mães estão trabalhando presencialmente, nossa economia está, cada vez mais, retornando ao normal, e cada vez mais, pais e mães estarão sem ter onde deixar seus filhos. Portanto, a educação infantil se torna mais essencial, enquanto outras etapas de ensino ainda podem remotamente atender”, completou. Na ocasião, o governador também destacou que a educação infantil é uma etapa não obrigatória para os pais enviarem os filhos, assim como não há o cumprimento de dias letivos.

Diante da repercussão negativa, principalmente por parte de profissionais da área médica, o governo estadual tem adotado o discurso de que a eventual retomada não é obrigatória, que as famílias com possibilidade de seguir com os filhos em casa podem e devem assim permanecer, mas que é necessário dar a oportunidade e o direito de escolha aos pais que estão regressando ao trabalho e não têm onde deixar as crianças.

A difícil situação das escolas infantis particulares é outro fator que tem sido colocado na balança. Pesquisa realizada em julho com cerca de 1.500 escolas ligadas ao Sindicato Intermunicipal dos Estabelecimentos de Educação Infantil do Estado do Rio Grande do Sul (Sindicreches), revelou que 12,8% previam fechar definitivamente em até 30 dias, e 41,6% podiam tomar a mesma decisão. De 90 mil crianças matriculadas em março, antes da pandemia se abater sobre o RS, restavam 42 mil em junho. A pesquisa apontou ainda cerca de 5 mil demissões entre os colaboradores das escolas infantis.

“Não estamos falando em obrigar as crianças. Nossa bandeira é a escola para as famílias que precisam de um local adequado”, explica Carina Becker Koche, presidente do Sindicreches. A retomada das atividades econômicas é destacada como um elemento importante ao debate. “Onde essas famílias estão deixando os filhos?”, questiona. Ao responder, ela mesma especula possibilidades, que vão desde as crianças ficarem com avós ou outros parentes, haver um revezamento entre pai e mãe, até o uso dos chamados “cuida-se” ou “mães crecheiras”, pessoas pagas na informalidade para ficar com crianças enquanto os pais saem para trabalhar. “Isso tudo pode, agora um local com pessoas profissionais não pode?”, reclama a presidente do Sindicreches.

Planejamento

Carina diz que tem passado os dias pensando e, brinca, até sonhado com a sigla COE — Centros de Operações de Emergência em Saúde para a Educação. A razão é trivial. É o COE que determinará quais protocolos sanitários as escolas deverão cumprir para poderem reabrir. Por enquanto, há o COE do governo estadual como parâmetro, estabelecido por decreto, porém, como as escolas infantis estão ligadas aos municípios, é preciso que as prefeituras estabeleçam seus próprios protocolos. Por enquanto, dos 497 municípios gaúchos, apenas 37 constituíram seus COEs, segundo levantamento do Sindicreches. Em Porto Alegre, o COE ainda não está formado, fato que tem desagradado, e muito, a presidente do Sindicreches e diretores de escolas — a Capital tem cerca de 600 escolas privadas de educação infantil.

“Não adianta pressionar a data de abertura, se não temos nem o COE”, argumenta Carina. “A volta às aulas em Porto Alegre está atrelada a instituir o COE e organizar os protocolos. Se a regra não está estabelecida, não há como se planejar”, afirma. Embora acredite que os protocolos que serão criados pela Prefeitura sejam parecidos com aqueles já divulgados pelo governo estadual, a presidente do Sindicreches enfatiza que as escolas precisam conhecer quais serão as exigências para poderem se planejar. “Enquanto não tiver o COE, não há como abrir”, sentencia.

Pela proposta do governo do Estado, poderão abrir escolas infantis cujas cidades estejam sob bandeira laranja ou amarela, conforme o modelo de Distanciamento Controlado. Ainda que Porto Alegre esteja em bandeira vermelha, Carina defende que a Prefeitura deve estabelecer os protocolos desde já, e não esperar a eventual mudança da bandeira para então debater as exigências sanitárias. “Devemos planejar agora na bandeira vermelha para poder abrir na amarela ou na laranja. A gestão da escola é feita com planejamento. A gestão do município também deve ser feita com planejamento. Então, estamos cobrando dos municípios planejamento de retorno às aulas.”

Ansiedade e cautela

Enquanto os protocolos da Prefeitura não são definidos, as escolas infantis particulares já se agitam. Depois de longos meses fechadas, a iminência de reabertura após a sinalização do governador tem feito com que as instituições, aos poucos, voltem a reunir suas equipes e comecem a adaptar os espaços físicos e comprar os produtos de higiene que deverão ser necessários. Por enquanto, o planejamento tem sido feito com base nos protocolos do governo do Estado. “Estamos esperando que a Prefeitura nos sinalize o que é mais importante”, afirma Elinor Robles, diretora da escola Carrossel, localizada no bairro Bom Fim.

Com 50 anos de atividades, a Carrossel contava com cerca de 100 crianças antes de fechar as portas, em março, no começo da pandemia. Desde então, a escola perdeu em torno de 40% das matrículas, percentual que Elinor acredita chegará aos 50% até o final do crise. A diretora crê que a reabertura do comércio e das atividades econômicas em geral esteja pressionando os governos e principalmente as famílias para deixarem os filhos em locais “confiáveis”.

Elinor enfatiza que protocolos rígidos deverão ser bem sucedidos nessa retomada e diz que fará tudo exatamente como venha a ser estabelecido pela Prefeitura. A equipe da Carrossel já iniciou os treinamentos e preparativos para o desafio que se aproxima. “Temos que aprender a conviver com esse vírus”, avalia a diretora. “A vida tem que voltar, temos que conviver, esse vírus não vai embora tão cedo.” Apesar da resignação, Elinor reconhece os riscos, principalmente no atual momento, com a Capital enfrentando um alto nível de contágio. “Temos muito medo.”

Ela ainda não sabe quantas famílias com filhos na Carrossel estão dispostas a levar as crianças, caso a escola reabra nas próximas semanas. Alguns pais dizem que mandarão os filhos tão logo a escola volte, outros falam que ainda não, e há aqueles que comentam preferir esperar os primeiros dias após a retomada para avaliar os impactos. “São decisões difíceis de tomar”, analisa Elinor, sem perder o otimismo: “Quando abrirmos, estaremos ‘afiados’”.

Há 28 anos à frente do seu “sonho”, a escola Ser Criança, localizada no bairro Petrópolis, Susana Fogliatto avalia ser bom as aulas presenciais voltarem pela educação infantil. Para ela, os extremos da educação, superior e infantil, são as fases mais adequadas para essa retomada. Isso porque, no caso das crianças menores, confia ser mais fácil de cuidar e vigiar pequenos grupos, com a equipe em maior número da escola, do que, por exemplo, alunos do ensino fundamental com 8, 9 ou 10 anos de idade.

Ainda assim, a diretora da Ser Criança tem sérias dúvidas sobre um retorno agora. Prefere projetar a retomada em outubro, quando, tem esperança, a Capital já estará numa situação melhor, com queda de contágio, mortes e ocupação de leitos de UTI. “Vejo a educação infantil voltando em outubro. Já vai estar calor, com as salas mais arejadas, a quantidade de roupas das crianças para trocar será menor. Penso que para outubro, as coisas estando mais tranquilas, pode ser”, pondera Susana.

Ela também cita a situação dos pais que estão voltando ao trabalho como uma questão importante e conta que há educadores de escola sendo contratados individualmente para cuidar de crianças em casa. Há casos em que se reúne até 7 ou 8 crianças, o que, do ponto de vista da saúde e dos riscos de contágio, não é nada bom. “Chega um ponto em que a qualidade de estar em casa é menor do que na escola.”

Tal como as responsáveis de outras escolas, Susana diz que já está providenciando os materiais necessários para reabrir, seguindo o protocolo do governo estadual enquanto a Prefeitura de Porto Alegre não cria o COE. Quando as regras e exigências do município forem estabelecidas, avalia que então serão necessários entre 15 ou 20 dias para organizar tudo. Por isso, vislumbra um sinal positivo sendo dado em meados de setembro, para assim poder abrir em outubro.        

Com cerca de 80 crianças, Susana diz não ter perdido muitos alunos durante os meses de crise. Para isso, porém, teve que conceder amplos descontos, que partiram de 50% do valor da matrícula e cresceram conforme a situação de algumas famílias. “Tenho muitas que não pagam nem 50%”, afirma. A Ser Criança tem em torno de 40 funcionários. Para conseguir minimizar a situação financeira crítica, ela enfatiza a importância da Medida Provisória (MP) 936, depois transformada na Lei 14.020/20, que possibilitou a suspensão de contratos e a redução de salários.

Susana conta ainda não ter feito uma pesquisa formal com as famílias para saber quantas estão dispostas a enviar os filhos para a escola. Diz que irá esperar uma data oficial. Informalmente, algumas famílias já sinalizaram que voltarão só no final do ano, outras dizem que retornam assim que a escola reabrir e, tal como na Carrossel, ainda há o grupo que prefere esperar os efeitos da reabertura para depois decidir. “A escola tem que voltar porque será bom para as crianças, mas claro que a sobrevivência financeira também é importante. É uma situação bem complexa. Ninguém sabe o que é melhor, não se sabe qual rumo seguir”, analisa a diretora da Ser Criança. E reforça: “Temos que voltar num período em que a cidade estiver mais ‘tranquila’, com menos casos”.

Apoio e transparência

Outubro também é o mês vislumbrado para o retorno das aulas presenciais por Katyana Brum Lugo, uma das sócias da escola Corujinha Sapeca, situada no bairro Bom Jesus. Fundada há 29 anos, a instituição perdeu cerca de 40% das matrículas desde o começo da crise do coronavírus, principalmente crianças do berçário e do maternal. O forte vínculo com as famílias é apontado por ela como o fator responsável pela situação não estar ainda pior. Katyana conta ter aberto o jogo com os pais assim que as dificuldades financeiras se tornaram evidentes. Apenas a folha de pagamento dos funcionários consome cerca de 75% da renda bruta da escola.

“Criamos uma comunicação clara com os pais. No momento em que mostramos a situação, eles vieram junto. Não me escondi e deu muito certo”, afirma. “Tivemos que nos reinventar, baixar mensalidades. Cada mês era um novo cenário. Sempre busquei trabalhar com transparência.” Com o passar do tempo e a progressão da crise, a diretora diz que a cada mês o cenário mudava. Mais rescisões, novos pedidos de desconto.

Em determinado momento da pandemia, Katyana fala ter identificado um abalo emocional nos pais da crianças. As atividades on-line feitas com os filhos desde o começo da crise, ganharam um olhar mais atento às dificuldades dos adultos. “Fizemos atendimento individual e escutas com as famílias. E então conseguimos resgatar as famílias, e as atividades pedagógicas foram de acordo com cada família. Era preciso os pais estarem bem para atenderem os filhos”, explica.

Atualmente com 30 crianças vinculadas, a dona da Corujinha Sapeca diz que a escola se prepara para reabrir. A perspectiva, quando isso acontecer, é que a retomada comece com 15% das crianças. Katyana destaca que a escola foi construída para ser uma instituição de educação infantil, não é um imóvel adaptado para tal função, e que isso lhe traz vantagens nesse momento, com espaços mais amplos. “Sei que a realidade não é essa, sou privilegiada neste aspecto. Poucas têm essa estrutura. Mas mesmo assim não é algo 100% seguro. Nem ir ao mercado é seguro”, afirma.

Os preparativos para a retomada estão em marcha, com os protocolos do governo do Estado sendo aplicados e tendo a cidade de Manaus como exemplo. A capital do Amazonas foi uma das primeiras a sofrer intensamente com o vírus e também a pioneira na reabertura das escolas de educação infantil. “Manaus está sendo uma fonte de luz”, diz Katyana, explicando que há troca de experiências com as escolas de lá.   

Tal como a presidente do Sindicreches e outras diretoras de escolas, a proprietária da Corujinha Sapeca faz coro à necessidade da Prefeitura em estabelecer o Centro de Operações de Emergência em Saúde para a Educação (COE) e definir os protocolos do município. “A gente precisa de tempo para se planejar, comprar materiais. Quanto antes a Prefeitura apresentar os protocolos, melhor a gente consegue se planejar”, destaca Katyana.

Ela reforça que a reabertura não será obrigatória e acredita que a escola, além de ter que sobreviver, é um serviço essencial para as famílias que precisam trabalhar. “A opção é dos pais. Não tá sendo congruente abrir comércio…os pais que estão indo trabalhar, deixam os filhos onde?”, questiona. Dar o direito de escolha às famílias é, para ela, algo muito importante, sob o risco de pais e mães estarem deixado os filhos em locais inseguros ou, pelo contrário, não irem trabalhar e talvez até perder o emprego. “É isso que tem que ficar claro…que bom, que privilégio para quem não precisa, mas tenho que pensar em quem está precisando.” O tempo provável, a “esperança” de retorno, para a sócia da Corujinha Sapeca, é mesmo outubro. Antes disso, crê ser muito difícil.    

Ainda não

O médico Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, é categórico ao afirmar que a capital gaúcha não está no momento de retomar as aulas presenciais. Ele enfatiza que todas as cidades e países que tentaram, de modo sério, controlar a contaminação do coronavírus, não retomaram as aulas com altos níveis de infecção. “E mesmo em níveis mais baixos, houve novos surtos”, alerta.

Sprinz acredita que as aulas não voltarão no final de agosto, conforme desejo do governador Leite. Embora diga ter críticas ao modelo de Distanciamento Controlado, o infectologista espera que as aulas presenciais não retornem nem em bandeira laranja, muito menos em vermelha.

“As crianças vão se contaminar. As crianças vão ter vírus nas suas secreções, não vão ter sintomas e, provavelmente, vão transmitir para suas famílias”, explica Sprinz, também professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Em todos os locais em que se tentou voltar, teve recrudescimento da doença.”

O infectologista afirma não conhecer nenhuma cidade ou país que voltou às aulas com o nível de contágio e mortes elevado, como é a atual situação de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Sucinto, ele não tem dúvidas do resultado caso a Capital tente o experimento: “As crianças vão se contaminar”.