A miséria da segurança pública no estado do Ceará

As populações mais pobres do estado do Ceará vivenciam, nas periferias urbanas e zonas rurais, violações sistemáticas aos direitos humanos. São pessoas que se acostumaram a ver outras serem assassinadas, entre elas, seus filhos, parentes, amigos e vizinhos. Na década de 1990, o Ceará era povoado por “gangues”, galeras e grupos locais que assumiam para si o controle de um território e estabeleciam os territórios inimigos, matando sistematicamente em função dessa separação.

A mesma dinâmica permaneceu na primeira década do século XXI, com incrementos relacionados ao desenvolvimento de mercados ilegais de drogas e armas em todas as cidades cearenses. Nos anos de 2013, 2014 e 2015, as populações começaram a sofrer ainda mais com homicídios, com, respectivamente, 4.395, 4.439 e 4.439 casos de crimes violentos letais intencionais registrados pela Secretária de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

Apenas, em três anos, 13.273 pessoas morreram por intervenção violenta de outra pessoa. Depois desses três anos, com a capital Fortaleza e outras cidades cearenses figurando entre “as mais violentas do mundo”, o ano de 2016 representou uma espécie de “alívio” em razão da redução do número de homicídios.

Em 2016, foram registrados “apenas” 3.407 crimes violentos letais intencionais. O problema é que essa redução não ocorreu função de políticas públicas de segurança e justiça, mas por um acordo entre facções criminosas articuladas desde os presídios até as comunidades. Começava ali uma situação que se desenvolveu enquanto o governo do estado, em seu discurso público, declarava que falar de facções no Ceará “era brincadeira”.

A “brincadeira” tomou forma e se tornou mais perigosa na segunda metade do ano de 2016, com as facções Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC) quebrando o frágil acordo de paz entre elas. A situação se complicou um pouco mais quando grupos locais decidiram criar uma força local denominada os Guardiões do Estado (GDE).

No primeiro momento, a GDE se posicionou como uma força independente, buscando adesão em presídios, unidades de atendimento socioeducativo e comunidades locais. Usou o discurso de que o Estado tinha um comando e os “pivetes” não precisavam estar associados e pagando “mensalidades” a grupos de fora. Diante da intensificação da “guerra entre facções”, com o CV aliado a Família do Norte (FDN) nas suas ações dentro do estado do Ceará, a GDE se aproximou do PCC, criando uma aliança de não agressão que tenciona a eliminação das outras duas facções do estado do Ceará. É importante destacar que existem relatos da atuação de outras facções no Estado, mas não se dispõem de boas informações sobre isso até o momento.

Após a deflagração da guerra, os presídios cearenses foram reordenados para que cada unidade correspondesse a uma facção criminosa específica. Os muros das comunidades foram pichados e demarcados por cada um dos grupos, com indicações para que motoristas baixassem os vidros de seus carros e tirassem os capacetes. A ideia era evitar algo que se tornou comum, a invasão do território por pessoas fortemente armadas, com intuito de expulsar os inimigos e tomar o território para si. Nessa configuração, os casos de chacina se proliferaram.

Em 3 de junho de 2017, em uma festa no bairro Porto das Dunas, um grupo invadiu uma casa e seis pessoas foram assassinadas. No dia 13 de novembro de 2017, cerca de vinte homens armados invadiram o Centro de Semiliberdade Mártir Francisca, no bairro Sapiranga, e mataram 4 internos. Na internet, ainda é possível ver um vídeo de um menino de 13 anos mostrando os dedos da mão tatuados com os números 7, 4 e 5, que representam a GDE. Além desses dois casos emblemáticos, a imprensa cearense retratou em suas matérias, pelo menos, mais outras 6 situações de chacina.

Em todos esses casos, existem relatos de que as mortes não se restringem aos integrantes das facções, com pessoas não envolvidas vitimadas, simplesmente, por estarem no local do acontecimento.

Moradores das periferias de Fortaleza relatam que é possível uma pessoa ser “decretada” (jurada de morte) pelo simples fato de ser simpatizante de uma facção. Áreas invadidas e tomadas de uma facção por outra se tornaram palco de expulsões de famílias inteiras. Meninas que, porventura, tenham relações com integrantes de uma facção inimiga são classificadas como “marmitas” do grupo rival e a ordem é “onde pegar, pau no gato”.

Os relatos, também, apontam para a existência de terríveis práticas de tortura física, em “tribunais do crime” ou em ações que visam demonstrar a força de uma facção e do que ela é capaz de fazer. A mais recente ação atribuída ao trabalho das facções foi a Chacina das Cajazeiras, ocorrida no dia 27 de janeiro de 2018. Na ação, 14 pessoas morreram e outras 8 ficaram feridas. As primeiras imagens do crime revelam corpos de mulheres caídos e os relatos se mostram incrédulos, pois apontam para o fato de que as pessoas ali não eram envolvidas com as facções.

A SSPDS, no entanto, segue um ritual comum nesses casos. Primeiramente, seus gestores vem a público afirmar que irão investigar antecedentes criminais das vítimas, divulgando seus nomes apenas depois de feito esse levantamento. Como em outros caos, os familiares precisam sofrer, além da dor da perda de um ente querido, a humilhação de ser objeto da desconfiança e das acusações sociais por trás desse modus operandi.

Despertou atenção, também, o fato de o secretário de segurança André Costa afirmar que a Chacina das Cajazeiras se tratava de um “caso isolado”. Em sua primeira declaração sobre o caso, ele salientou que “não há motivo para pânico”, afinal, chacinas em boates acontecem em todos os lugares do mundo. Enquanto falava com repórteres, ele esqueceu de todo o contexto aqui apresentado como do fato de em 2017, no seu primeiro ano de gestão da SSPDS, serem registrados 5.134 crimes violentos letais intencionais no estado do Ceará.

Este número incrível retrata a profundidade de uma tragédia em curso, com consequências dramáticas para a população mais pobre que, nos dias de hoje, tem muito motivos para entrar em pânico. Esqueceu, entre outras coisas, de falar que os péssimos resultados de sua gestão, no controle social dos homicídios, são fruto de investimentos equivocados em policiamento ostensivo em detrimento de ações policiais de investigação e de outros investimentos na área social.

Observou-se, nos últimos vintes de governo do Estado, a mesma lógica de política pública de segurança baseada em ações de policiamento ostensivo, com uma indiferença incrível as mortes entre grupos locais que atuam nas periferias cearenses, tratando os crimes como “acertos de conta entre bandidos”. Assim, milhares de jovens pobres das periferias morreram sem que qualquer responsável por suas mortes fosse indiciado. Enquanto isso, a população mais rica viveu sua vida indiferente a tudo isso. Realmente, os moradores de áreas nobres não têm motivos para pânico, pois as mortes não acontecem nas portas de suas casas, nas praças que frequentam, nas escolas de seus filhos ou nos seus locais de lazer.

A disseminação da violência é circunscrita a periferia, com jovens não apenas matando e morrendo, mas aprendendo a matar e morrer como parte de um processo de socialização. As facções cultivaram, nos presídios e nas periferias, a ideia de que são irmandades e se constituem como verdadeiras comunidades políticas, instituídas por compromissos e sentimentos de pertença ao grupo. Suas ações violentas, no entanto, são quase sempre circunscritas à periferia, atualizando discriminações internas que repercutem na vida das populações locais, gerando uma vitimização contínua e restrita as populações mais pobres e marginalizadas. Diante da anuência de governos e segmentos privilegiados da população, a responsabilidade pelo problema é tratada como resultado da escolha de cada um. Realmente, a maior parte dos jovens das periferias cearenses escolhe apenas morrer depois de uma vida inteira sem nenhum envolvimento com a prática de crimes.

O problema, no entanto, ainda é os que não fazem essa escolha e encontram um mundo social em que não veem sentido em amar ou criar projetos de vida.

São pessoas que não encontram respeito ou motivos para respeitar a vida do outro. São lembrados apenas pelas forças policiais ou pelos inimigos e isso os transforma em pessoas capazes de muitas coisas até que sofram uma morte violenta, em uma sociedade que não considera sua humanidade. Será necessário pensar sobre isso para encontrar soluções que envolvam reconstrução de uma sociedade que aprendeu a ver e a deixar morrer uma parte da sua população.

Luiz Fábio Paiva é Professor de Sociologia da UFC. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência e membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais