Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de “degradação da liberdade”

Decisões costumam ser revistas pelo STF, mas são indicativo de “judicialização da política”, dizem especialistas. Globo, Portal GGN, revista ‘Crusoé’ e TV RBS foram alvo de censura este ano.

Gil Alessi – ElPaís – São Paulo

Nas últimas semanas, uma série de decisões judiciais amordaçou veículos de imprensa após ações movidas por integrantes da classe política ou do mercado financeiro. O caso mais recente envolveu o parecer da juíza Cristina Serra Feijó, do Tribunal de Justiça do Rio. Na sexta-feira ela proibiu a TV Globo de exibir documentos ou trechos de peças relativas à investigação do caso das rachadinhas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que à época era deputado estadual. Trata-se de um caso de censura prévia, vedada pela Constituição Federal. Alguns dias antes, o Judiciário fluminense também determinou que o portal GGN retirasse do ar uma série de reportagens sobre o banco BTG Pactual. Em um contexto no qual o próprio presidente Jair Bolsonaro ataca veículos de imprensa e ameaça jornalistas que criticam sua gestão ou que abordam assuntos incômodos, especialistas alertam para um clima de “degradação” do ambiente de liberdade de expressão e de imprensa no país.

Quando uma reportagem é barrada pela Justiça antes mesmo de ter sido publicada, “quem perde é a sociedade. A censura prévia é sempre uma violação da liberdade de expressão e imprensa”, afirma Marcelo Träsel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele destaca que, nos casos mencionados, ocorre ainda um “prejuízo de informações de interesse público, que ao serem ocultadas deixam a sociedade sem acesso a fatos fundamentais para monitorar atividades de um governante, empresa ou representante público”. No caso da investigação envolvendo Flávio, por exemplo, se a imprensa tivesse sido proibida de divulgar documentos do caso desde o início não se saberia que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 89.000 reais em depósitos feitos pelo ex-assessor Fabrício Queiroz, ligado a milicianos. Os Bolsonaro negam ter cometido qualquer crime, mas o Planalto ainda não explicou porque Michelle recebeu mais valores do que a devolução de um empréstimo, sem comprovante ou declaração no imposto, que o presidente diz ter feito ao ex-assessor.

Se no curto prazo a população fica sem informações relevantes, Träsel destaca também prejuízos no horizonte distante. “Esse tipo de decisão degrada o ambiente público e a liberdade de expressão de uma maneira geral. Se não é revertida em instâncias superiores, mesmo a longo a prazo, isso tem um efeito ruim”, afirma. Ele diz que geralmente nestes casos o Supremo Tribunal Federal tende a derrubar as decisões de primeira instância de censura prévia.

Estes movimentos do Judiciário contra a imprensa precisam ser entendidos em um contexto maior, de “judicialização da política no Brasil”, afirma André Augusto Salvador Bezerra, juiz e pesquisador da Universidade de São Paulo. “É um fenômeno mundial, e tem atingido temas sensíveis para os valores democráticos”, diz. Para o magistrado, “a judicialização da política nunca deve ser comemorada, pois ela é sintoma de anomalia no sistema político: ou ele não está funcionando direito ou está com problemas de legitimidade”. Ele cita como um dos primeiros casos deste movimento as decisões jurídicas que obrigavam o poder público a fornecer medicamentos para tratamento do HIV. “Começou como garantia de direitos —o que já aponta anomalia do sistema, uma vez que os Governos deveriam garantir estes remédios para a população fora dos tribunais—, e se espalhou para praticamente todas as esferas”, diz. “Por isso nosso sistema democrático tem um tribunal constitucional: para que ele dê um basta quando entender que a Constituição foi desrespeitada”, conclui.

Mas nem sempre o STF age com a velocidade esperada. Um caso emblemático de censura e morosidade do Judiciário envolveu o clã Sarney e o jornal O Estado de São Paulo, que teve uma reportagem censurada a pedido de Fernando Sarney, filho do ex-presidente, por 3.327 dias. O ministro Ricardo Lewandowski derrubou em 2018, após nove anos de silêncio, a decisão de primeira instância da Justiça do Distrito Federal e Territórios. O caso em questão dizia respeito à publicação de gravações obtidas no âmbito da Operação Boi Barrica que apontavam para ligações entre Sarney e a contratação de parentes e afilhados políticos por meio de atos secretos.

Nem Bezerra nem Träsel, da Abraji, acreditam que a censura a veículos de imprensa piorou sob o Governo Bolsonaro. Ambos apontam para a existência de uma “pluralidade do Judiciário”, o que ajudaria a deixar os casos de censura prévia restritos a uma parcela menor de juízes.

A ação que censurou a Globo na semana passada foi movida pela defesa de Flávio Bolsonaro. No entendimento da magistrada que deferiu o pedido, como o processo corre em segredo de Justiça a divulgação dos dados comprometeria “sua imagem [de Flávio] no cenário político” e seria “potencialmente lesiva à sua honra”. O senador comemorou a censura nas redes sociais: “Não tenho nada a esconder e expliquei tudo nos autos, mas as narrativas que parte da imprensa inventa para desgastar minha imagem e a do presidente Jair Messias Bolsonaro são criminosas”.

Já no caso do GGN, a Justiça afirmou que as matérias publicadas não poderiam “causar danos à imagem de quem quer que seja”. O juiz Leonardo Grandmasson Ferreira Chavez afirma que “pelo conjunto da obra [do GGN]” parece haver uma “campanha orquestrada para difamar o banco, cuja imagem é “patrimônio sensível para seus acionistas”. Contrariando a jurisprudência da Corte, o ministro do STF Marco Aurélio Mello manteve a decisão do juiz do Rio que censurou o GGN. Os advogados do portal informaram que vão recorrer, mas ainda não existe data para que o plenário do Tribunal discuta a questão.

O próprio STF, no entanto, também pode agir de forma corporativa. No ano passado houve um caso de censura que partiu da própria Corte: o ministro Alexandre de Moraes ordenou que se retirasse do ar uma reportagem da revista Crusoé que envolvia o presidente do Tribunal, Antonio Dias Toffoli, e o delator Marcelo Odebrecht. Em seu despacho, Moraes ainda chamou a matéria de “fake news”, acusação refutada pela publicação.

Em junho deste ano, outro caso de censura prévia, desta vez envolvendo a TV RBS. O juiz Daniel da Silva Luz, do Rio Grande do Sul, concedeu decisão liminar proibindo a veiculação de uma reportagem sobre concessão irregular do abono emergencial.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) se manifestou por nota sobre o caso da Globo, e afirmou que a decisão é inconstitucional: “A ANJ espera que a decisão inconstitucional da juíza seja logo revogada pelo próprio Poder Judiciário”. A reportagem tentou sem sucesso entrar em contato com os juízes mencionados.