Pesquisa indica que somente 37% dos homicídios dolosos no País são esclarecidos

Os dados são de levantamento do Instituto Sou da Paz. O TJRS não forneceu informações suficientes para calcular a situação do Estado

Por Luciano Velleda | lucianovelleda@sul21.com.br

Dentre os quase 40 mil casos de homicídios dolosos cometidos no Brasil em 2019, apenas 37% resultaram em denúncias à Justiça contra os acusados até o final de 2020. Desse total, 28% dos homicídios foram esclarecidos no ano do crime e 9% no ano seguinte, uma diferença que reforça o que a literatura especializada costuma apontar: quanto mais tempo demora a investigação, mais difícil fica a identificação do autor e maior a possibilidade de o inquérito ter como destino o arquivamento.

Em relação à pesquisa anterior, publicada em 2021, houve uma regressão de 7% no indicador de esclarecimento de homicídios dolosos no Brasil. Os resultados são da 5ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios”, divulgada nesta terça-feira (2) pelo Instituto Sou da Paz.

Desde 2017, a organização tem requisitado aos Ministérios Públicos e aos Tribunais de Justiça das 27 unidades federativas do País informações sobre homicídios dolosos (com a intenção de matar) que causaram ações penais. Nesta edição, foram solicitados via Lei de Acesso à Informação dados de homicídios que aconteceram em 2019 e esclarecidos até 2020.

Para a realização do estudo, o Instituto Sou da Paz obteve dados completos de 19 estados brasileiros para calcular o indicador, três a mais do que na última edição. Os Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça de oito estados não produziram os dados necessários para o cálculo do indicador: Alagoas, Amazonas, Goiás, Maranhão, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Sergipe e Tocantins. Segundo o Sou da Paz, estes oito estados apresentaram dados incompletos acima de 20% das informações enviadas, incluindo ausência na data do homicídio.

Na pesquisa de 2021, o RS alcançou um índice de 52% no esclarecimento desse tipo de crime contra a vida. Nesta última edição do estudo, entre os estados que enviaram informações com a qualidade necessária para compor o índice, Rondônia foi o estado que mais esclareceu homicídios ocorridos em 2019, com percentual de 90% de esclarecimento, seguido pelo Mato Grosso do Sul, com 86%, e Santa Catarina, com 78%. Na edição de 2021, Mato Grosso do Sul já havia se destacado, com um percentual de 89%.

Em sentido oposto, o estado com a menor taxa de esclarecimento de homicídios foi o Rio de Janeiro, com 16% de elucidação de homicídios, ainda que tenha avançado 2% em relação à pesquisa do ano anterior. O estado com a segunda pior taxa é o Amapá, com 19%, seguido de Bahia, Pará e Piauí, cada um tendo esclarecido 24% dos homicídios ocorridos em seus territórios em 2019.

“O homicídio doloso é o crime de maior gravidade, é o crime em que a resposta do Estado é fundamental para garantir às pessoas a sensação de segurança, a sensação de que o Estado é capaz de responder ao crime dessa gravidade”, observa Beatriz Graeff, pesquisadora do Instituto Sou da Paz, destacando que o propósito do estudo é incentivar as instituições do Sistema de Justiça a realizarem essa mensuração por conta próprias e não avaliar o trabalho da Polícia Civil e do Ministério Público.

A pesquisadora comemora o aumento, ao longo dos anos, das informações prestadas pelos Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça dos estados. Se no estudo de agora 19 estados ofereceram dados completos, na primeira edição da pesquisa foram apenas seis.

“É muito importante que a gente chegue no momento em que todos os estados consigam fornecer as informações necessárias para fazermos esse acompanhamento. É importante não apenas pela fotografia do momento, mas também pra termos uma série histórica pra acompanhar como cada Estado está evoluindo na sua capacidade de responder ao crime com morte”, pondera.

Das cinco edições da pesquisa, o RS conseguiu fornecer dados completos em apenas duas. Beatriz explica que o sistema de informações do MP e do TJ do RS não tem o filtro automático com a data do homicídio doloso e que esse problema foi um fator decisivo para o estado não entrar na pesquisa divulgada em 2022.

“O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nos enviou dados informando a data de abertura do inquérito, que na maioria das vezes é uma data próxima ao fato, mas não é exatamente correspondente. Mas mesmo com essa data existiu uma inconsistência, porque a gente acabou com um número maior de denúncias cujos inquéritos foram abertos em 2019 do que o total de homicídio registrados, ou seja, tem uma inconsistência nesse dado que a gente não conseguiu identificar qual era”, explica a pesquisadora do Instituto Sou da Paz.   

Na última edição da pesquisa, o indicador de esclarecimento de homicídios dolosos no Brasil regrediu 7% em relação ao ano anterior. Gráfico: Instituto Sou da Paz
Apagão de informações sobre raça/cor

Na 5ª edição do estudo, pela primeira vez o Instituto Sou da Paz solicitou aos estados informações complementares a respeito do sexo, idade e raça/cor das vítimas. Dos 19 estados que enviaram dados completos para o cálculo do indicador de esclarecimento dos homicidas dolosos, apenas nove enviaram algum dado sobre o perfil das vítimas. E destes, apenas três estados do País são capazes de informar dados sobre a raça/cor das vítimas no conjunto de homicídios esclarecidos, e mesmo assim, com um nível baixo de preenchimento do dado.

A organização salienta que a proporção de vítimas do sexo masculino é sempre superior à de vítimas do sexo feminino. Porém, a proporção de vítimas do sexo feminino é significativamente maior no universo de homicídios esclarecidos, quando comparado à proporção na totalidade dos homicídios registrados em cada um dos estados.

“O desenho de políticas não pode deixar de levar em consideração que há uma parcela da população afetada pela violência letal de forma desproporcional em razão do racismo, da discriminação e da desigualdade de renda”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, demonstrando preocupação com a falta de dados a respeito da raça/cor das vítimas. “A ausência desses dados evidencia que as instituições do sistema de Justiça responsáveis pelo processamento de um homicídio desconsideram a relevância dessas informações para o aprimoramento da sua atuação.”

Para ela, o baixo percentual nacional de esclarecimento de homicídios e a enorme variação entre os estados mostra que o Brasil ainda precisa avançar muito para aumentar a resposta a esses crimes, de forma a garantir aos familiares e à sociedade o direito à verdade e a justiça em relação a essas vítimas.

“A análise sobre o percentual dos homicídios esclarecidos ajuda a mostrar que o país precisa priorizar e reforçar sua capacidade de investigar e processar esses crimes, que são os mais graves e que atentam contra a vida das pessoas”, afirma Carolina.

“Sabemos que nosso sistema de segurança pública e de justiça criminal ainda foca muitos esforços nos crimes patrimoniais e em outros sem violência, impulsionando prisões provisórias que lotam o já saturado sistema prisional. É preciso dirigir os esforços e os investimentos, sobretudo, para a investigação e esclarecimento dos crimes contra a vida, onde, de fato, mora a impunidade”, destaca a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

A população prisional no Brasil atualmente é de 670 mil pessoas. Cerca de 40% deste total estão presas por crimes contra o patrimônio (roubo, extorsão, por exemplo), 29% por crimes relacionados a drogas, 21% por outros crimes e 10% por homícidio.

A experiência da Paraíba

Outra inovação da 5ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios”, foi a introdução de um modelo alternativo ao elaborado pelo Sou da Paz para a mensuração do esclarecimento de homicídios – a metodologia da organização considera como esclarecido o número de denúncias oferecidas pelo MP sobre o total de homicídios ocorridos num determinado período de tempo.

O Sou da Paz explica que, em diálogo com diferentes Polícias Civis do País, foram identificadas outras formas de fazer essa mensuração. Na pesquisa de 2022 foi então  apresentada a experiência da Paraíba, que criou seu “Indicador de elucidação de Inquérito Policial de Crimes Violentos Letais Intencionais”. Este indicador considera o número de vítimas dos inquéritos relatados com autoria identificada sobre o total de vítimas nos inquéritos instaurados. É uma metodologia distinta que avalia o grau de elucidação de homicídios antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

A organização afirma ser importante que as diferentes Polícias Civis do País passem a medir de forma organizada e transparente o número de homicídios esclarecidos, ainda que com uma metodologia distinta da sua.

“Quando criamos nosso indicador, nosso objetivo era também incentivar a melhoria da capacidade de medir e criar indicadores para seu próprio trabalho por parte das polícias civis”, comenta Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.