‘O Estado não foi feito para dar lucro, significa que não atendeu a sociedade’

Presidente do sindicato dos auditores do TCE analisa o superávit anunciado e celebrado pelo governo do RS.

Por Luís Gomes | luisgomes@sul21.com.br | Foto: Luiza Castro

O governo do Estado anunciou no dia 7 de junho que as contas públicas do Rio Grande do Sul fecharam o primeiro quadrimestre do ano, de janeiro a abril, som superávit de R$ 4,1 bilhões, o que seria o dobro do registrado no mesmo período de 2021. Secretário da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso afirmou, na ocasião, que tratava-se de um resultado fiscal a ser “celebrado”.

Nos primeiros quatro meses do ano, a receita do Estado foi de R$ 23,9 bilhões, incluindo o ingresso de R$ 955,2 milhões da privatização da Sulgás, enquanto a despesa apresentou queda de R$ 127 milhões em relação ao mesmo período do ano passado, ficando em R$ 19,8 bilhões. Oficialmente, o governo atribuiu o resultado “às reformas estruturais aprovadas de 2019 a 2021, aos efeitos das privatizações, à regularização da dívida com a União, ao rígido controle de despesas e à recuperação da atividade econômica”.

Os dados constam no Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) do 2º bimestre de 2022 e do Relatório de Gestão Fiscal (RGF) do 1º quadrimestre de 2022, publicados no dia 30 de maio.

O resultado significa que o Rio Grande do Sul está superando a crise financeira e passará ter melhores condições para investimentos nos próximos anos? Para ajudar a responder essas questões, a reportagem conversou com Filipe Costa Leiria, presidente do Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do Estado do RS (Ceape-Sindicato),

Leiria pontua que a primeira questão que deve ser colocada na análise do resultado é justamente “para que serve” o equilíbrio fiscal.

“Se o Estado arrecada pouco, se ele tem um desequilíbrio fiscal, ele potencialmente pode ter problemas para viabilizar suas políticas públicas. Mas, também, se ele não gasta o suficiente, o Estado não foi feito para dar lucro, significa que não atendeu a sociedade ou não prestou o serviço. Só faz sentido falar em resultado fiscal se ele se converte em bem-estar para a sociedade”, pondera.

O presidente do Ceape destaca também que o superávit de R$ 4,1 bilhões é um resultado que tem uma série de elementos circunstanciais. O primeiro deles é justamente a venda da Sulgás, que incrementou o caixa do Estado em R$ 955 milhões.

O segundo é a retirada dos cálculos apresentados pelo governo nos quadrimestres anteriores da provisão de recursos que deveriam ser destinados para o pagamento da dívida com a União. Isso ocorre porque, desde 2017, o governo não vinha pagando as parcelas da dívida com a União em razão de uma liminar do Supremo Tribunal Federal, mas ainda assim contabilizava a título do cálculo de déficits e superávits os valores que seriam despendidos com o serviço da dívida em caso de derrubada da liminar.

Nestes quatro primeiros meses de 2022, o pagamento da dívida seria equivalente a R$ 1,3 bilhão. Contudo, como o governo formalizou a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal, que permite a retomada gradual das parcelas da dívida, o valor foi retirada da apresentação dos relatórios. A dívida com a União atingiu em abril o montante de R$ 75,7 bilhões.

Descontando a venda da Sulgás e a mudança na forma de contabilização da dívida, o superávit real nos primeiros quatro meses do ano foi da ordem de R$ 1,8 bilhão, destaca Leiria.

Além disso, neste resultado, não está contemplado o aumento de despesas que o Estado terá com a aprovação, no mês de maio, do reajuste de 6% para o funcionalismo público estadual, que retroagirá a janeiro deste ano. Leiria pontua que o reajuste, em um ano, acrescentou R$ 1,2 bilhões à folha salarial.

Ele avalia que a mudança “estrutural” que o governo de fato promoveu foi o achatamento das despesas ao custo do aumento de alíquotas previdenciárias e da retirada de direitos dos servidores.

“Se a gente pensar a partir do pressuposto ideológico que o governo trabalha, de redução do tamanho do Estado e da ótica da redução da despesa, a gente pode entender que, de fato, a reforma da Previdência passou a sobretaxar aposentados e pensionistas. Antes, a base de contribuição deles para previdência era tudo que excedia o teto da Regime Geral e agora, com a reforma, passa a ser tudo que excede o salário mínimo. A grosso modo, em torno de 75% hoje da folha do Estado é formada por trabalhadores que recebem até o teto do regime geral. Esses trabalhadores, quando se aposentavam, eles não tinham a perspectiva de contribuir, hoje eles passam a contribuir. Uma grande massa de trabalhadores aposentados, a maioria professores e brigadianos de patentes baixas, não contribuíam para previdência e passaram a contribuir. Então, a mudança estrutural foi criar uma receita a partir da redução do salário dessas categorias, porque essa sobretaxação ela não tem uma contrapartida em algum benefício previdenciário futuro, o que justifica a instituição dela é a existência de déficit da previdência”, diz.

O governo informou que as despesas com pessoal aumentaram de R$ 9,8 bilhões no primeiro quadrimestre de 2021 para R$ 10,4 bilhões neste ano, puxados pelo reajuste concedido aos professores no ano passado. Contudo, a alta de 5,9% ficou abaixo da inflação acumulada no período, em torno de 12%, o que significa que não houve crescimento real das despesas com o funcionalismo no período. A arrecadação do Estado com ICMS, principal tributo estadual, no primeiro quadrimestre foi de R$ 15,2 bilhões, alta de 7,2% em relação ao primeiro quadrimestre de 2021. Considerada a inflação, significa uma queda real de quase 5%, o que foi influenciado pela redução nas alíquotas de ICMS a partir de janeiro de 2022.

Leiria avalia que, ainda olhando a partir da lógica de redução de despesa, há uma contradição promovida pelo governo, que foi a aprovação do Projeto de Lei Complementar 148, em agosto de 2020, que autorizou o governo a utilizar recursos do fundo de previdência complementar dos servidores, o Fundoprev estimado à época em R$ 1,8 bilhão, para pagar o déficit da previdência. Na prática, isso significou retirar 17 mil servidores de um regime de capitalização, cujas aposentadorias seriam pagas pelo fundo, e jogar as despesas de suas aposentadorias no futuro para o caixa único do Estado.

“Ao mesmo tempo que se justificou uma redução salarial sobre a ótica do déficit, sobre a questão da Previdência, se faz um retrocesso previdenciário e se joga 17 mil vidas para um regime que não forma reserva. Então, essa é a contradição, vamos dizer, da mudança estrutural que o governo anuncia. Quais são os resultados disso? O resultado disso é que sim, em curto prazo, o governo tem uma aparente vantagem. Qual seria a aparente vantagem? A possibilidade de sacar os recursos que essas 17 mil pessoas acumularam lá no Fundoprev, o governo poderia em tese sacar, 2,6 bilhões (em valores de hoje). Mas isso gera um passivo enorme para o futuro. No fundo, aquilo que se chama de estrutural é antecipar ganhos no curto prazo, mas deixar déficits de longo prazo”, avalia.

Leiria diz ainda que, na prática, essa proposta ainda não foi implementada, uma vez que a Secretaria da Previdência do Ministério da Economia não aprovou a mudança dos servidores do regime capitalizado e aguarda a apresentação de novos estudos sobre o tema.

Por fim, Leiria pontua que o governo ainda não apresentou o resultado prática do superávit, que seria a melhoria do bem-estar da população do Rio Grande do Sul.

“Ok, a gente faz esses esforços todos, reduzindo direitos e jogando despesas para frente, mas isso se converte em bem-estar? Onde é que a gente pode olhar? E aí podemos pegar três agendas básicas: educação, saúde e segurança. No sistema prisional, não se enfrentou as grandes questões, a questão de presídios. A questão dos índices educacionais, evasão escolar, o RS vem piorando, entre crianças e adolescentes. Esse superávit ocorreu à base da redução de reformas das escolas, à base desse sucateamento. Esse superávit é gerado a partir do sucateamento do serviço prestado, portanto sacrificando o bem-estar social, não é a partir de um crescimento de uma receita, de um desenvolvimento. O Eduardo Leite não teve políticas, por exemplo, para o Polo de Rio Grande. Não teve política industrial para a Serra, não teve um Estado pensando estruturas para desenvolver a economia. E como isso se materializa? A gente vê que aqueles centros mais adensados, Região Metropolitana, Serra, alguns polos do norte e nordeste do Estado, como têm um setor do privado mais ou menos pujante, essas regiões não demandam tanta infraestrutura. Mas tu pega o sudoeste do Rio Grande do Sul, que tem uma pobreza enorme, tem uma estrutura social que as pessoas não têm uma mobilidade social, elas se ressentem mais da falta de acesso pelo poder público. É um Estado que trabalha com a ideia de que o setor privado é quem vai fazer a economia crescer e o papel dele é só evitar o gasto para tentar desonerar e a economia transbordar esse cálice da prosperidade para todos os setores. Não é isso que a gente vê, mas é como esse governo trabalha, a linha ideológica dele é essa”, diz.

Na apresentação dos relatórios, o governo do Estado informou que os investimentos realizados com recursos próprios foram expandidos de R$ 49 milhões no primeiro quadrimestre de 2021 para R$ 380 milhões em 2022.

Pagamento da dívida

Ao fim e ao cabo, Leiria avalia que o espaço fiscal aberto pelo governo com as reformas previdenciária e administrativa, bem como com as privatizações, tem o objetivo de garantir a retomada da dívida com a União. “Não foi para formar uma reserva, não foi para se converter em política pública, foi para pagar uma dívida com evidência de sua quitação”, diz.

Junto com os outros sindicatos, o Ceape defende há anos que a dívida da União deveria ser auditada. O embasamento dos sindicatos é de que a cobrança de juros sobre juros, mecanismo chamado de anatocismo, seria vedada entre entes federados, e no entanto é o que ocorre na dívida do Rio Grande do Sul, uma vez que ela é reajustada todos os meses pela inflação acumulada e por uma taxa de juros que incidem sobre o montante total da dívida e não pelo seu valor original, este argumento embasa uma ação da OAB-RS. O próprio Estado do RS também questionava o montante da dívida por meio de uma ação que solicitava a mudança do índice de correção inflação do IGP-DI para o IPCA e a retirada da cobrança de juros entre entes federativos. A ação do Estado resultou na liminar do STF que suspendeu o pagamento das parcelas em 2017. No entanto, como parte do acordo de adesão ao Regime de Recuperação Fiscal, o governo abriu mão da ação.

“A dívida virou um fluxo para o sistema financeiro porque ela não tem uma previsibilidade de quitação, ela não tem instrumentos de adequação à capacidade de pagamento do Estado. O anatocismo gera o que se chama de uma dívida perpétua. Inclusive o David Price, que é o teórico que fez a tabela Price do sistema de amortização, diz que depois de 100 prestações uma dívida que tem juros sobre juros tende a ser perpétua”, explica.

Leiria pontua que, pelas tabelas apresentadas pelo Ministério da Fazenda a respeito do regime de recuperação fiscal do Rio Grande do Sul, o Estado terá que atingir uma meta de R$ 3,089 bilhões de superávit em 2025 para pagar a dívida. “É muito claro que, com todo esse esforço que está sendo feito, com toda essa alienação que está sendo feita agora, se chega a superávits primários muito aquém daqueles que o Estado vai ter que cumprir ao longo do regime de recuperação.  Não tem como atingir as metas sem comprometer um mínimo de qualidade do serviço prestado pelo Estado e sua própria capacidade mínima de funcionamento. Então, a dívida não é trabalhada com uma lógica de que se quite, ela é trabalhada com uma lógica de que o Estado fique permanentemente pagando-a e quanto mais inadimplente melhor. Isso é um instrumento de dominação da União e de supressão do pacto federativo vigente. Como a dívida é impagável, a União tem um instrumento de intervenção nas contas do Estado, é isso que justifica o regime de recuperação fiscal”, diz.