Reforma trabalhista tem erros que não poderiam ser cometidos por alunos do 1º semestre do Direito, diz ministro aposentado

Luís Eduardo Gomes

Com participação do provável candidato à presidência da República pelo PDT, Ciro Gomes, a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da IV Região (Amatra IV) promoveu na manhã desta sexta-feira (25), no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa (AL-RS), o debate “Reforma do Trabalho: novas formas de trabalho justificam a Reforma?”, que foi mediado pela ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Maria Helena Mallmann e contou com a participação do presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Ângelo Fabiano Farias da Costa, e do ministro aposentado do TST, Gelson de Azevedo. Em cerca de 2h40 de evento, os participantes trouxeram várias críticas à reforma cujas regras passam a valer a partir de novembro, apontando diversas inconstitucionalidades e argumentando que ela não resolverá o problema do desemprego no Brasil, pelo contrário, terá como consequências a precarização do trabalho e a redução do poder de compra dos trabalhadores.

Na abertura dos trabalhos, Malmann ponderou que a reforma trabalhista foi conduzido em um “ambiente muito estranho”, numa espécie de “acordo de contas” com a Justiça do trabalho, em que o debate foi conduzido de forma plebiscitaria, opondo quem era a favor ou contra, mas sem a profundidade necessária e a análise do impacto de que cada uma das cerca de 100 alterações na CLT trará. Segundo ela, a ausência de um debate necessário “cala fundo em nossas mentes”.

Ciro Gomes  Foto: Maia Rubim/Sul21

Origens da reforma 

Primeiro palestrante, Ciro iniciou sua fala fazendo uma análise das raízes do que chamou de “aberração”. Segundo ele, a reforma tem suas origens nos anos de 1980, na desconstrução do Estado de bem-estar social britânico promovida no governo de Margaret Thatcher. Ele aponta que, até então, o Reino Unido vinha adotando políticas de proteção ao trabalhador financiadas por uma carga tributária acima dos 40% do PIB, o que, no entanto, não teriam impedido o império britânico de ser o centro do capitalismo até a Segunda Guerra Mundial. Contudo, com a emergência da concorrência gerada pela elevada industrialização de países asiáticos, mas que não possuíam um estado de bem-estar social como o europeu, o governo Thatcher teria oferecido como resposta o desmonte das garantias ao trabalhador e, consequentemente, do sindicalismo, políticas que configurariam o Neoliberalismo e seriam reproduzidas nos EUA pelo governo de Ronald Reagan, dando origem ao chamado Consenso de Washington, que pautariam a política econômica brasileira nos anos de 1990, especialmente sob Fernando Henrique Cardoso. Ciro pondera que a base dessas políticas era a redução do custo de trabalho e que esta lógica alimentou a reforma trabalhista atual.

Ele retorna aos anos 1990 para salientar que, nessa época, a grande preocupação da indústria brasileira era a incapacidade de competir com a China, sob o argumento de que a hora trabalhada no país asiático seria inferior. No entanto, ele salienta que, em média, o trabalhador chinês já tem um custo por hora mais elevado e a indústria daquele país continua sendo mais produtiva do que a brasileira, o que, na verdade, seria produzido por um ganho muito grande de escala que se torna possível com o crescimento do mercado interno e valorização salarial, questões que ele não considera que não serão impactadas positivamente pela reforma trabalhista. “O empresário brasileiro ainda não aprendeu que ganho salarial é que dá ganho de escala”, diz Ciro, acrescentando ainda que, para enfrentar a estagnação da indústria brasileira, seria necessário, na verdade, enfrentar questões como a alta taxa de juros e uma taxa de câmbio valorizada, não reduzir garantias dos trabalhadores.

Ciro ainda atacou o contexto político que produziu a reforma, apontando que o “governo golpista” de Michel Temer não tinha legitimidade para fazer uma reforma de tamanha magnitude sem debate e cujos impactos a maior parte da população sequer tem noção de qual serão. Ele ainda criticou o fato de que a reforma foi “engolida com casca e tudo” pelo Senado. “Se você tomar as notas taquigráficas do Senado, é praticamente unânime a repulsa dos senadores a norma aprovada”, diz, acrescentando que, porém, ela foi aprovada mesmo assim, também quase que por unanimidade, com muitos senadores argumentando de que era necessário passar o texto sem alterações aquele aprovado antes na Câmara e que haveria um acordo com o Temer para que algumas das correções que achavam necessárias seriam feitas em uma Medida Provisória elaborada por Temer. O presidente até fez a MP, mas logo em seguida o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), um dos principais defensores da reforma, disse que a Câmara não iria admitir alterações em seus texto. “Isso reforça o debate sobre a inutilidade do Senado, pelo fato de ter aberto mão de seu papel de Câmara revisora”.

Ângelo Fabiano | Foto: Maia Rubim/Sul21

Formalização do bico 

Presidente da ANPT, Ângelo Fabiano começou sua fala que as novas formas de trabalho que surgiram nas últimas décadas de fato justificariam uma reforma trabalhista, mas não a que foi aprovada. “Essa veio pra desmontar direitos e tirar milhões de trabalhadores da proteção da CLT”, afirmou. Concordando com Ciro, ele apontou que as alterações na legislação trabalhista tem como objetivo principal a redução dos custos de mão de obra e que, junto com a terceirização aprovada anteriormente, irá promover um “cardápio de contratos precários”, aumentará o número de fraudes e facilitará a criação de empresas sem trabalhadores. “A reforma pode até criar empregos no papel, mas devido ao aumento da formalização de empregos precários”, diz.

Um dos principais pontos de crítica do procurador é criação do “falso trabalhador autônomo”, uma vez que permitirá que trabalhadores autônomos sejam contratados por exclusividade e com carga de trabalho fixa, o que deveria configurar relação de subordinação. “Teremos trabalhadores demitidos e recontratados como autônomos com exclusividade de forma contínua, sem nenhum direito e proteção, podendo chegar a trabalhar em troca de prato de comida, em condições de escravidão”, afirmou. Também criticou a chamada jornada de trabalho intermitente, argumentando que o trabalhador não terá mais controle sobre quantas horas irá trabalhar por mês, o que gerará remunerações abaixo do salário mínimo e fará com ele não consiga ter previsibilidade sobre como irá pagar suas contas. “É a formalização do bico”.

Ele ainda afirmou que a reforma teve o objetivo de desestruturar os sindicatos, sob o ponto de vista financeiro, com o fim obrigatoriedade do imposto sindical, e com medidas como a eliminação da necessidade de demissões serem homologadas por eles. Fabiano disse que, na verdade, até era contra a obrigatoriedade do imposto sindical, mas não de forma que não fossem indicadas contrapartidas de financiamento. Vai quebrar os sindicatos de trabalhadores e vai mudar muito pouco para os empresariais, que são financiados em grande parte pelo sistema S”.

Gelson de Azevedo, ministro aposentado do TST Foto: Maia Rubim/Sul21

Inconstitucionalidades

Gelson de Azevedo iniciou sua fala ironizando o fato de que só no Brasil pode ser implementando uma reforma que já nasce sobre a perspectiva de ser reformada. Também considerou que, por sua inspiração, trata-se de uma reforma que “supervaloriza” a vontade individual e “pretensamente” fortalece a vontade coletiva, mas acaba enfraquecendo os sindicatos, que é o espaço onde se manifesta a vontade coletiva. Assim como os demais participantes da mesa, considerou que ela também é fruto de uma disputa de poder entre Justiça do trabalho, uma espécie de resposta ao histórico de súmulas e normas emitidas pelo judiciário que regraram o direito do trabalho brasileiro ao longo tempo.

Azevedo disse que, diferentemente do presidente do ANPT, não palestraria sobre o conteúdo da reforma, mas ponderou que, por exemplo, era importante que se fosse regulamentada a jornada intermitente de trabalho, porque esta já existia na prática. Citou, que este já era o modelo usado para contratação de trabalhadores portuários e que, quando era juiz de primeira instância, julgou e condenou diversos casos em que restaurantes contratavam mão de obra por meio de uma banca da garçons estabelecida em uma praça no Centro de Porto Alegre. Ponderou, porém, que não avaliaria se a regulamentação feita era boa ou ruim – em sua fala, Fabiano já havia comentando que parlamentares justificaram essa forma de contratação como positiva para estudantes e aposentados, mas criticou o fato de que não havia qualquer delimitação na lei sobre quais categorias ou grupo de pessoas poderiam ser contratadas por meio dela.

O foco do ministro aposentado foi apontar as “flagrantes inconstitucionalidades” existentes na reforma. Segundo ele, algumas delas poderiam ser apontadas até por alunos do primeiro semestre de Direito. “Se um aluno meu cometesse erro técnico, daria 0. E zero com desonra”, disse Azevedo, que foi professor da PUC-RS. Entre as diversas inconstitucionalidades que apontou está a indexação de indenizações trabalhistas, como em ações por dano moral, ao salário do trabalhador, o que considerou que fere o princípio constitucional de igualdade. “Quer dizer que a moral de um rico vale mais que a moral de um pobre?”

Salientou que, no caso do teletrabalho, a reforma fere o princípio da isonomia ao definir que o funcionário poderá trabalhar em casa por acordo, mas que basta uma decisão unilateral da empresa para que volte ao local de trabalho, bem como criticou o fato de a nova legislação permitir que o empregador delegue ao empregado a responsabilidade e o risco de adquirir seu material de trabalho. Apontou que a possibilidade de quitação anual das pendências trabalhistas entre empregador e empregado será utilizado como instrumento de coação que irá gerar demissões.

Ele ainda argumentou que jamais a questão do grau insalubridade poderia ser suscetível a alterações por meio de acordos e que, no caso das gestantes e lactantes, permitir que trabalhem em locais insalubres mediante atestado médico fere o direito de fetos e recém-nascidos, que são protegidos pela Constituição. “As regras sobre o direito de trabalho não são consideradas normas de saúde? Mas porque fixou-se a jornada de trabalho? Por prazer? Fixaram-se justamente por questões de segurança e saúde”.

Ao final, respondendo a perguntas, Ciro considerou que a reforma terá grandes prejuízos para os pequenos empresários, que sofrerão com o “dumping social” promovido pelas grandes empresas, por estas se beneficiarem mais com as reformas, e sustentou que o próximo presidente terá que, como uma de suas primeiras medidas, promover a “revogação dessa excrescência”.

Fonte: Sul21